seg, 29 setembro 2025 16:26
PEC da Blindagem: por que foi arquivada e o que estava em jogo para a democracia brasileira?
A medida vinha para facilitar meios e mecanismos de proteção e imunidade destinados a parlamentares, mas foi arquivada por unanimidade pela Comissão de Constituição e Justiça

A tramitação da chamada PEC da Blindagem, aprovada pela Câmara do Deputados no dia 16 de setembro, movimentou intensos debates no cenário político e jurídico do Brasil. Apresentada como uma emenda à Constituição, a proposta reacendeu discussões antigas sobre os limites da imunidade parlamentar, a separação de poderes e a igualdade de todos perante a lei.
No dia 21 de setembro, capitais como Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro foram palco de manifestações contra a PEC da Blindagem, em um movimento que expressou a insatisfação popular e a importância do direito dos cidadãos de se posicionarem diante de situações políticas alarmantes.
Após uma tarde de debates e mobilização, a voz da população prevaleceu na última quarta-feira (24), com a decisão unânime dos senadores pelo arquivamento da proposta pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sem que o texto chegasse a ser analisado em plenário.
De acordo com advogado Gustavo Tavares Cavalcanti Liberato, mestre em Direito Constitucional e docente do curso de Direito da Universidade de Fortaleza — instituição mantida pela Fundação Edson Queiroz —, a PEC trazia consigo riscos evidentes de retrocesso democrático, colocando em xeque princípios fundamentais que sustentam a República brasileira.
O que foi a PEC da Blindagem e como ela surgiu?
A proposta de emenda nasceu em meio a um contexto de forte instabilidade política no Congresso Nacional. O professor Gustavo explica que a PEC surgiu “como resultado de um acordo político no intuito de encerrar a ocupação da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados por parlamentares de oposição, os quais tentavam tomar à força a pauta para forçar a votação do projeto de anistia aos condenados pela tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023”.
Protesto ocorrido na orla de Fortaleza contra a Anistia e a PEC da blindagem (Foto: Thiago Gadelha/Diário do Nordeste)
A medida foi construída a partir de uma adaptação da PEC nº 03/21, com a inclusão de uma emenda substitutiva que buscava atender às demandas de setores da classe política. Entre os principais pontos, a proposta previa o restabelecimento das regras de imunidade processual anteriores à Emenda Constitucional nº 35/2001.
Isso significa que, para iniciar investigações contra parlamentares, voltaria a ser necessária a autorização da própria Casa Legislativa, em votação secreta. “Entre 1988 e 2001, essa metodologia somente autorizou a instauração de 1 processo e bloqueou outros 253 pedidos de abertura”, lembra Gustavo, ressaltando o risco de um retrocesso caso o modelo fosse retomado.
Além disso, a PEC ampliaria a prerrogativa de foro para presidentes de partidos políticos, mesmo que não sejam parlamentares, criando uma camada extra de proteção para líderes que muitas vezes se mantêm no cargo por longos períodos.
Retrocesso no campo jurídico
Ao analisar a proposta, o professor Gustavo é enfático: “A PEC da Blindagem representa um grande retrocesso numa República, uma vez que um dos elementos básicos desta é a responsabilidade dos agentes políticos ante os cidadãos e a igualdade de todos perante a lei”.
O docente explica que, ao conceder privilégios desproporcionais a parlamentares e dirigentes partidários, a medida criaria uma espécie de “direito especial”, rompendo com o princípio republicano. Ele chama atenção ainda para o possível impacto na dinâmica política do país: “Somente os vereadores ficariam excluídos deste regime favorecido, acarretando enorme impacto na atuação política e levando a que facções criminosas possam ver nisso um salvo-conduto para implementar seu domínio sobre a estrutura do Estado”.
Mas por que essa PEC entrou novamente em pauta? A velocidade da tramitação também gerou estranhamento. A proposta foi colocada em regime de urgência e chegou a ser votada em horários atípicos, como durante a madrugada. Para o professor Gustavo, essa pressa tem explicações políticas.
“[Isso é] como resultado de um acordo político para tentar recuperar o controle, de fato, da Câmara dos Deputados, uma vez que atende ao quanto se tem chamado há algum tempo de ‘peculiar ética parlamentar’. Isto é, a capacidade de respeitar as expectativas construídas, seja no campo da licitude ou, até mesmo, do ilícito, como no caso do ‘orçamento secreto’ e das emendas parlamentares ao orçamento da União”, pondera.
Segundo o advogado, interesses diversos se uniram em torno da proposta, incluindo setores que buscam pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamentos de grande repercussão e partidos envolvidos em denúncias de desvio de verbas públicas.
Constitucionalidade em debate
A crítica central de juristas e especialistas é a inconstitucionalidade da proposta. O professor destaca: “Há flagrante inconstitucionalidade quanto ao princípio republicano, pois, numa República, é elemento nuclear a responsabilidade dos agentes políticos perante os cidadãos”.
Outro ponto sensível é a ampliação da prerrogativa de foro para presidentes de partidos, algo que, na visão do jurista, violaria diretamente o princípio da isonomia. Além disso, ele aponta que a PEC poderia comprometer o sistema de freios e contrapesos entre os poderes, cláusula considerada pétrea pela Constituição e, portanto, intocável por meio de emendas.
Para compreender melhor a análise da proposta, é preciso recorrer à Hermenêutica Jurídica, campo de estudo dedicado à interpretação das normas. “O uso da Hermenêutica, no caso, permite identificarmos valores sociais peculiares de uma certa camada da sociedade brasileira, notadamente a parlamentar, que se entende merecedora de um tratamento privilegiado”, explica Gustavo.
Ele ressalta que a Constituição deve ser interpretada como um conjunto coeso de valores. Assim, qualquer alteração precisa estar em harmonia com princípios como a isonomia, a separação de poderes e o republicanismo. No caso da PEC, a avaliação do advogado é clara: tratava-se de uma reforma incompatível com esses fundamentos.
Imunidade para crimes comuns: uma “licença para a ilicitude”
Um dos pontos mais polêmicos da PEC foi a possibilidade de blindagem para crimes comuns, como homicídio, estelionato ou envolvimento com organizações criminosas. Segundo o professor Gustavo, os impactos seriam devastadores.
“A imunidade formal para os crimes comuns, como acontecia anteriormente, tende a representar um ‘salvo-conduto’, uma verdadeira ‘licença para a ilicitude’ para o crime organizado das mais diversas formas” — Gustavo Liberato, mestre em Direito Constitucional e docente do curso de Direito da Unifor
Ele cita como exemplo o caso recente do deputado estadual conhecido como TH Jóias, preso por suspeita de ligação com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. A aprovação da PEC, segundo o jurista, abriria espaço para que situações semelhantes fossem encobertas pela proteção parlamentar, enfraquecendo ainda mais a confiança da população nas instituições.
A eventual aprovação da PEC da Blindagem poderia aprofundar a crise de legitimidade do Congresso Nacional. “Sem dúvidas que a deslegitimação parlamentar tenderia a se agravar, pois indicaria aos eleitores que o Congresso se prende apenas aos seus interesses de espírito de corpo”, alerta o advogado Gustavo.
Essa percepção de autoproteção dos políticos pode, na visão dele, criar terreno fértil para novas aventuras autoritárias e movimentos golpistas, em um país historicamente marcado por rupturas institucionais.
O fato de a proposta ter sido votada em horários incomuns, como durante a madrugada, também chama atenção. Para o professor de Direito da Unifor, essa estratégia revela a tentativa de reduzir o debate público: “Deu-se uma abordagem de grande celeridade e pressão sobre os parlamentares para que a aprovação fosse o menos debatida o possível, impedindo, com isso, uma discussão aberta na sociedade sobre o que se estava a aprovar especificamente”.
Lições da história: o “deputado da motosserra”
O Brasil já viveu episódios emblemáticos que mostram os riscos de uma imunidade ampla. Um dos mais lembrados é o caso de Hildebrando Pascoal, conhecido como “deputado da motosserra”, acusado de crimes bárbaros nos anos 1990.
“O caso do Deputado Hildebrando Pascoal é um exemplo de uma outra faceta da chamada peculiar ética parlamentar”, comenta o professor. Ele lembra que crimes de violência explícita, como assassinatos, tendem a isolar politicamente o autor, mas que outras práticas ilícitas, como desvio de verbas ou participação em organizações criminosas, encontram maior tolerância, algo que seria agravado pela aprovação da PEC.
Apesar do cenário preocupante, Gustavo ressalta que já existem mecanismos suficientes para proteger a atividade parlamentar sem abrir brechas para a impunidade. “A sistemática vigente com a Emenda 35/01 já atende, com sobras, à proteção do parlamentar quanto à sua atividade, não havendo justificativa plausível para que se venha a temer perseguições políticas”, afirma. Ou seja, a proteção atual é considerada adequada, e a ampliação proposta pela PEC da Blindagem não se justifica no campo constitucional.
Um alerta para o futuro
A discussão em torno da PEC da Blindagem, além de um debate técnico, trata-se de um ponto crucial para o futuro da democracia brasileira. A proposta, se tivesse avançado, poderia ter aberto caminho para a blindagem de políticos diante de crimes graves, enfraquecendo os mecanismos de controle entre os poderes e aprofundando a descrença da população em seus representantes.
Para Gustavo, é necessário olhar para o passado e aprender com os erros. “O que deveríamos pretender é a equiparação de deputados federais, senadores, deputados estaduais e distritais aos vereadores, os quais, não tendo imunidade formal, apresentam-se como estrutura mais republicana do que a estabelecida para os demais cargos”, conclui o professor do curso de Direito da Unifor.
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