qui, 15 outubro 2020 16:31
A desejável companhia da memória: histórias de quem revisitou lembranças na pandemia
Professores da Universidade de Fortaleza contam de que forma as boas memórias ajudaram a enfrentar o isolamento social
Quem remexeu o baú de recordações durante o isolamento social? E o que pode a memória quando usada como dispositivo de reencantamento do presente e projeção de futuro?
É divertido lembrar
Um voltar-se para si. Eis um dos efeitos colaterais da pandemia global que levou o mundo a experimentar o isolamento social como medida preventiva contra a proliferação descontrolada do novo coronavírus. Ensimesmados, também nos vimos quase que involuntariamente levados a lembrar, mobilizando o passado para, de alguma forma, acalentar e dar mais sentido ao presente. Mas, afinal, que papeis a memória pode desempenhar em momentos traumáticos como o atual, em que perdas e dúvidas sobre o futuro podem nos tirar o chão?
Professora do curso de Direito da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, Ivanilda Sousa teve a memória como sua melhor companhia desde que a Covid-19 interrompeu abruptamente o prazer incomparável de estar todos os finais de semana em almoços e tardes inteiras com toda a família. “Tive sim que olhar para dentro para reinventar inclusive a tão necessária convivência familiar, já que, por responsabilidade social, optamos por respeitar as medidas de isolamento. Foi quando me vali da criatividade para amainar o distanciamento das crianças da nossa família, que são muitas. E rememorando as recordações de infância e toda uma relação de afeto que tinha e tenho com os livros da coleção Sítio do Picapau Amarelo é que resolvi criar o Clubinho de Leitura Monteiro Lobato, que tem servido para nos aproximar muito, ainda que virtualmente”, celebra.
Ao folhear as páginas amareladas pelo tempo da obra que primeiro lhe fez cócegas na imaginação Ivanilda fez uso lúdico da memória. “Sem planejar nada, me reconectei ali com um estado de encantamento que até hoje carrego comigo e sempre quis repassar principalmente para meu filho Pedrinho, que tem esse nome justo em homenagem ao personagem de Monteiro Lobato. E assim me veio o desejo de adaptar algumas histórias do Sítio para o teatro e formar um elenco familiar para encenar cada uma delas em encontros virtuais. Então, por meio da ferramenta Google meet, que é o nosso pirlimpimpim, a meninada e também os pais interpretam seus personagem devidamente caracterizados. Nossas peças semanais on line se tornaram assim a melhor forma de encontro e aproximação familiar e isso vem acontecendo desde maio, religiosamente. Tanto que quando termina uma já estão me perguntando quando será a outra”, ri-se.
E não foram só as crianças da família que se renderam e se reencantaram com o poder de contágio da memória infantil de quem cedo elegeu os livros como objetos mágicos ou escudos protetores em tempos alegres ou tristes. “O contágio foi imediato e geral. Os adultos passaram a se revezar nos papéis secundários, enquanto as crianças são as protagonistas, claro. Mas o envolvimento de todos e todas é o mesmo: eu adapto o texto para teatro, criando os diálogos e compartilho para que escolham seus personagens e decorem suas falas. Geralmente, faço a Cuca e já vi minha irmã viver a Dona Aranha e meu cunhado, que é todo sério, o Dr. Caramujo. E ele, em tese o mais contrito, mergulhou tão fundo na imaginação que dia desses até os bolinhos de chuva da tia Anastácia resolveu fazer para servir em cena aos filhos. Ou seja, está provado que a memória pode sim trazer de volta toda uma leveza, própria das crianças, como também a criatividade capaz de nos aliviar o peito em momentos de crise ou tensão”, acredita.
Arquivos do tempo
Guardar é verbo que a assessora pedagógica e professora do Centro de Ciências Tecnológicas (CCT) da Universidade de Fortaleza (Unifor), Rafaela Ponte Lisboa, conjuga desde criança. Seus arquivos físicos, que começaram a ser organizados em caixas de sapato e hoje se desdobram em nichos por toda a casa, dizem sobre um desejo romântico de reter o passado para que ele seja recuperado em seus mínimos detalhes sempre que o presente carecer de um colorido a mais. Aconteceu durante a pandemia e diante do necessário isolamento social exigido por ela: como acabou hospedada temporariamente com a filha Maria Victória na casa dos pais rever as fotografias de cada álbum de família depois que o avô veio a falecer virou cacoete quase diário.
“A causa da morte do meu avô não foi Covid-19, mas como estávamos no auge da pandemia tanto o velório quanto o enterro foram para poucos. E eu não pude ir. Então, retomar e rever as fotografias foi como um ritual de passagem ou uma forma de fazer o luto. Eu preciso e sempre precisei dos objetos para conectar o passado com o presente e assim projetar o futuro com mais segurança. E é porque, reconhecidamente, entre familiares e amigos, todos sabem que tenho uma memória privilegiada, ou seja, lembro tudo. Mas é que gosto de marcar os acontecimentos com pequenas coisas, que podem ser desde um pedaço do azulejo da casa da minha avó, que foi demolida, até os bilhetinhos trocados em sala de aula na época da escola. É como se eu tivesse ali o poder de materializar a memória e isso também acaba me puxando e me fazendo enxergar melhor o presente”, explica Rafaela.
Para ela, que já foi professora de crianças e adolescentes e guarda até hoje desenhos ofertados por alunos e alunas do passado, a memória é afetiva, mas não nostálgica. “Não quero viver no passado, de maneira nenhuma. Mas sei do poder desses objetos que para mim são disparadores de gestos que preciso fazer no presente. Por exemplo, em meio à pandemia, retomei o contato com algumas pessoas que me voltaram à mente através dos meus guardados. E saber como elas estão hoje me fez muito bem. Então, uso a memória e crio esses escaninhos como fontes de prazer mesmo, até quanto eles me lembram momentos tristes ou difíceis. Nesse caso, me fazem ver que tudo passa e o importante é dar tempo ao tempo para que virem passado, mas também possam continuar nos impulsionando a seguir em frente”, ensina.
O recordar melancólico
A memória como recurso psíquico talhado para lidar com a dor. Eis a forma como a psicóloga, mestra em psicologia e professora integrante do Laepcus – Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade da Universidade de Fortaleza (PPG-Unifor), Evilene Abreu, encara aquilo que lembramos ou preferimos esquecer. Para ela, estamos vivendo um processo de luto em meio à pandemia global da Covid-19 e, diante das atuais experiências de perdas, recordar é acionar ao mesmo tempo um mecanismo de defesa e uma arma de combate para não sucumbir emocionalmente ao contexto traumático.
“A nostalgia está no ar e no consultório também. Tenho ouvido muito em terapia a palavra saudade. As pessoas estão sentindo falta de tudo o que de mais simples perderam: as aulas presenciais, as festas, as viagens, até o simples ato de sair de casa de cara lavada, como se diz, ou seja, sem máscara... E voltar ao passado, muitas vezes, é uma forma de amainar esse sintoma e manter tesa a esperança. Daí tantos 'tbts' nas redes sociais”, observa a psicoterapeuta que ao invés de mobilizar passados para digerir o medo e a tensão diante da virulência do novo coronavírus preferiu focar na retomada de projetos acadêmicos pendentes e desdobramentos futuros destes.
É no campo do simbólico, segundo ela, que a construção de memórias sobre acontecimentos traumáticos pode se dá. “Esse tempo de isolamento social por conta da pandemia foi muito importante para refletirmos sobre a finitude e criarmos formas para lidar com o insuportável, que é a proximidade ou risco iminente da morte. A impossibilidade de simbolizar a perda de um ente querido e ritualizar esse desaparecimento, que é da ordem do irrepresentável, nos levou a refletir mais sobre a nossa própria história e a buscar as memórias como um ancoradouro psíquico mesmo. Aprender a lidar com a melancolia do luto, para lembrar aqui um texto atemporal de Freud, é um processo individual e coletivo que o mundo vem experimentando de diferentes formas, mas não sem dor”, destaca Evilene.
Olhos nos olhos do presente, mesmo quando ele se mostra sufocado e quase inaudível. Mas sem deixar de ouvir os apelos do passado. Eis o desafio de quem é testemunha involuntária da maior crise sanitária do século XXI e ainda precisa levar adiante a transmissão de uma história comum que beira o insuportável. “A pandemia legou a todos nós um sofrimento indizível e isso também pela autocrítica que tivemos que fazer em relação ao passado, àquilo que poderíamos ter sido e o que nos tornamos. Mas é inescapável: somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repetir os mesmos erros infinitamente e a reinventar o presente”, defende.
As múltiplas faces do rememorar
Lembrar que lembramos. Para o doutor em Comunicação e professor do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza, que também coordena o Cineclube Unifor, Marcio Acselrad, um dos fenômenos contemporâneos mais deletérios e nocivos diz respeito ao triunfo do aqui e agora, aquele chamado imperativo para se viver somente o hoje. “Estamos tão mergulhados no presente que esquecemos do futuro e do passado. Isso tem a ver com a urgência do nosso tempo, essa época esquisita que alguns chamam de pós-moderna. É muito preocupante. O urgente não dá espaço para o importante. Ou seja, a gente está o tempo inteiro apagando incêndio e não se preocupa com o que realmente importa. Eu acho terapêutico e salutar manter contato com o nosso passado porque a vida sem lembranças ou planos é muito pequena”, opina o também coordenador do Cineclube Unifor.
Que o mergulho no passado seja, além de recomendável, profundo. Eis o conselho que o professor reitera de cátedra, já que ele mesmo é do tipo que guarda cartas e fotografias antigas, adora vasculhar gavetas, acumula pastas com programas de peças de teatro e shows de música que já frequentou e se orgulha de colecionar livros e CDs, mesmo que não os ouça mais. “Meu quarto é cheio coisas que remetem ao passado e isso me dá muito prazer. Não sei exatamente o por quê, mas no meu caso talvez por ser judeu ou mais provavelmente porque sou um carioca desterrado. De qualquer forma, me atrai a ideia de ser o narrador da minha própria história e da minha experiência vivida, como diria Walter Benjamin”, diverte-se.
Recentemente, ele se reviu entre arquivos afetivos há muito guardados. Foi quando, um pouco antes de anunciada a pandemia, reformou a casa e teve que esvaziar para remontar o gabinete de trabalho. “Fiz uma coisa que sempre quis, mas não tinha tempo: pegar toda a coleção de programas de peças de teatro e shows que vi na vida, entre Rio e Fortaleza, e tirar das pastas para exibi-las em uma imensa cesta de vime. Outro grande prazer foi revisitar as minhas fitas cassetes, centenas delas que durante muito tempo guardei sem grandes esperanças de algum dia voltar a escutar. Aí, de repente, comprei um aparelhinho que me permite ouvir essas coisas da minha juventude, incluindo shows que eu mesmo gravei. Então, super recomendo a quem puder aproveitar esse momento de introspecção: imprimam fotografias, comprem porta-retrato, colem bilhetinhos, tenham uma cortiça, guardem as lembranças, não compulsivamente, mas seletivamente”, sugere, efusivamente.
E se é recomendável até lembrar, há de se chamar atenção para o contrário. Tudo porque a memória é um fenômeno complexo, ou seja, pode ser terapêutica, mas também traumática; lúdica, mas também patogênica; esclarecedora ou reveladora, mas também falha. “Ficar enganchado nos problemas da memória era o que Freud chamava de trauma. E a memória nos prega peças, existem as falsas memórias. Na clínica, por exemplo, o importante não é saber o que aconteceu exatamente com o paciente, mas a relação que ele tem com aquela memória. Ou seja, nem sempre o encontro com nossas memórias é o melhor possível: tem muito arrependimento, rancor, vida não vivida, aquela sensação do que poderia ter sido feito e não foi... A gente pode se cobrar muito em relação ao passado e fazer da memória fonte de sofrimento – ou não”, alerta o professor.
Daí porque, para ele, que cita e recorre a Nietzsche, o esquecimento também é fundamental e tem um papel tão importante quanto a memória no desafio existencial de digerir os acontecimentos, sobretudo os traumáticos. “Esquecer é um direito e algo que deve ser debatido como tal quando pensamos, por exemplo, as redes sociais, espaço onde tudo o que você posta não pode ser esquecido e fica ali para todo o sempre. Até que ponto a memória é minha se a tornei pública? Ela passa a ser coletiva então? Eu, como herdeiro do Iluminismo, acredito no direito do indivíduo de construir e remontar a sua própria história ou memória, inclusive apagando o que achar que deve ser apagado. A memória não é estática e ninguém é senhor da memória do outro, pelo menos em tese. Mas o que vemos é a manipulação da memória e a mão do poder sobre ela muitas vezes. Portanto, a memória é também profundamente política”, encerra Márcio