qua, 13 maio 2020 10:58
Covid-19 retoma a importância do Jornalismo
Jornalistas desempenham papel fundamental na disseminação de informações com credibilidade durante a pandemia
A narrativa em torno de uma pandemia que ameaça a vida no planeta é titubeante, imprecisa, disforme, não linear. Disputada entre fontes oficiais e extraoficiais, alinha-se e desalinha-se in continuum, correndo mundo na tentativa de dar explicações em muitas línguas sobre o imponderável. Assim, a gagueira passa a fazer parte da fala noticiosa notadamente frágil e confrontada às muitas versões que envolvem o aparecimento e o lastro mortífero do novo coronavírus. Afinal, o que a maior crise sanitária do século XXI sopra aos ouvidos dos jornalistas? O que pode o jornalismo diante do esforço coletivo para, por meio dos relatos responsáveis dos fatos e da democratização da comunicação, também salvar vidas?
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O combate à desinformação
Em sua virulência de muitos tentáculos, o coronavírus incitou o jornalismo a trocar de pele: de proclamador da verdade ele passou a interlocutor das incertezas. E eis que o exercício da “não resposta” se tornou regra. É o que percebe a jornalista e professora Alessandra Oliveira, dos cursos de Jornalismo e Publicidade da Universidade de Fortaleza (Unifor): “O jornalismo tradicional vem sendo sim o principal interlocutor da sociedade nesse momento de pandemia, mas ele precisou operar com o não sabido, o que é uma coisa interessante, já que o seu principal alimento, que é a informação, não estava disponível. E foi justamente ao assumir essa postura de não mascarar a realidade com falsas respostas que acabou ganhando pontos junto à opinião pública, recuperando credibilidade na contramão das hard news apressadamente veiculadas nas redes”.
Checar, checar e checar novamente. Foi apostando no cruzamento rigoroso de fontes oficiais diversas que os veículos tradicionais, segundo Alessandra, voltaram a figurar como importantes filtros para olhar nos olhos da pandemia. Assim é que, de repente, navegadores também se tornaram telespectadores. “Posso dizer que antes da crise sanitária meus alunos não se interessavam por programas de televisão. Mas todos agora estão assistindo aos noticiários, inclusive Jornal Nacional. Tudo porque, por trás deles, é possível detectar todo um cuidado para não só para propagar como para depurar a informação, buscando o máximo de clareza. Note-se, por exemplo, que até o fato de os repórteres estarem ou não de máscaras a cada entrada ao vivo ou no estúdio tem merecido explicação. É que o compromisso com a informação de qualidade parece ter se renovado, enquanto que o jornalismo como utilidade pública e prestação de serviço - e não como produto à venda – voltou a dar ibope”, ressalta a professora.
Segundo Alessandra, ao invés da Big Data e seu imenso volume de dados, a mídia tradicional foi ter com o pequeno, o corriqueiro, a vida ordinária. “Achei muito bom quando o Jornal Nacional, por exemplo, passou a dar espaços generosos para histórias de gente comum, como a de um idoso que vivia num asilo e acabou morrendo em consequência da Covid-19. Esse é o foco do verdadeiro jornalismo, aquele que nasceu não só para esclarecer, mas também para transformar e melhorar a sociedade. Acho que o jornalismo passou a estar mais consciente dessa sua função original e, por isso mesmo, tornou-se essencial diante do aparecimento e recrudescimento da pandemia”, sublinha.
Para promover o debate e colocar múltiplas vozes em movimento foi ainda preciso coragem. “A importância de estar na rua, apesar de tudo, foi outra lição reaprendida pelo jornalista. Enquanto ninguém mais pode ir para a rua é dele a missão de ouvir as múltiplas vozes e mediar o debate público, restaurando inclusive o sentido de comunidade, aquele que se via ofuscado pela ideia de sociedade em rede. A pandemia reposiciona no mapa a importância do território ou dos grupos sociais territorialmente ligados. A vizinhança voltou à pauta e passamos a olhar de novo para a nossa rua, o nosso bairro, o nosso vizinho. Coube ao jornalismo, portanto, promover e cobrar compromisso e responsabilidade com o outro, instaurando um sentimento de cobrança social, mas no bom sentido. O recado é endereçado à coletividade: mais do que nunca, precisamos estar juntos. E a gente não vai conseguir vencer a tormenta se não estivermos juntos e cientes de que o que um faz implica na vida do próximo”, sustenta Alessandra.
A partir do jornalismo, a ordem então é enxergar a reclusão imposta pelo novo coronavírus como um movimento de abertura para o mundo, mas também de crítica aos seus modos históricos de funcionamento. “O jornalismo está indo além da doença ao analisar o impacto da crise sanitária em diferentes contextos e junto a diversas classes sociais. Quando ele revela que boa parte da população brasileira sequer tem acesso a água potável para lavar as mãos está colocando o dedo numa ferida bem mais antiga e que incomoda muita gente. Não à toa, jornalistas vêm sendo agredidos fisicamente ao fazer a sua função, que é dar visibilidade aos acontecimentos. Quero dizer que quando o jornalismo é atacado é porque tem alguma coisa muito errada acontecendo no país. E é preciso se posicionar, assim como os jornalistas e as empresas de comunicação vêm fazendo, ao mesmo tempo em que não se deixam intimidar diante de governos e pessoas que promovem a desinformação em nome de interesses particulares”, observa.
Pandemia sobre papel-jornal
Notícia que não quer passar, a Covid-19 parece ter vindo ao mundo para confundir - e não para explicar. Assim, a cada manchete de jornal ou chamada televisiva, coloca em xeque não só a ciência, a economia e a política vigentes, como o chamado Quarto Poder, aquele que se arvora a ser guardião de uma pretensa verdade e toma para si o papel de caixa de ressonância das múltiplas vozes humanas. Para a jornalista e professora Adriana Santiago, do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza (Unifor), a pandemia que desafia a imprensa a responder perguntas ainda insolúveis também tem levado a uma revisão do próprio ofício, abrindo brechas para um processo de requalificação da profissão.
“Nunca a suposta veracidade dos fatos pareceu tão relativa. Diante de uma pandemia que ainda gera mais perguntas do que respostas, a grande imprensa se viu convidada a recuperar sua centralidade em meio a uma disputa de forças e certo isolamento a que foi lançada desde que as tecnologias midiáticas abriram caminho nas redes digitais para que qualquer um pudesse vir a ser emissor e receptor de seus próprios enunciados e mensagens. Agora, me parece que a notícia tratada de forma profissional, aquela que é investigada a fundo, além de exaustivamente checada, voltou a ser valorizada e ter destaque diante do clamor da sociedade por informações confiáveis, capazes de ajudar a salvar vidas mesmo. Portanto, mesmo em meio a tantas perdas e dores, é interessante perceber que a pandemia arranhou a chamada era da pós-verdade, aquela em que a dita verdade sobre os fatos já não precisaria ser plausível, bastando que fosse ao encontro da minha visão de mundo, dos meus próprios interesses ou gostos pessoais”, reflete a professora.
Em meio à crise sanitária, o dedo foi justo na ferida do ethos jornalístico, ou seja, de um modo de ser e de estar no mundo como jornalista, algo construído historicamente a partir de uma “constelação de valores” e de práticas adotadas pelo profissional da imprensa. “É preciso entender que o jornalismo está sempre se formando e se auto-afirmando por meio de práticas como objetividade, honestidade, liberdade, rigor, exatidão, entre outras. Além de informar, o jornalismo deve analisar, promover empatia social, fórum público, mobilização, tudo em função da democracia. Mas íamos muito mal nisso, justo porque o polo ideológico do jornalismo, aquele representado pelo jornalista e seu trabalho quase messiânico de buscar a verdade, perdeu forças diante da subserviência do jornalismo aos padrões políticos e econômicos do capitalismo liberal. Deixou-se de promover a democracia para simplesmente vender notícia. E foi nesse contexto que o coronavírus veio como uma lâmina fazer um corte e lembrar que a vida é o nosso bem mais valioso e nada vem antes da defesa dela”, sublinha.
O retorno da grande mídia ao “polo ideológico” justo em tempos de pandemia também exigiu um novo olhar sobre uma conta que não fecha. “Não há mais como defender o Estado Mínimo, por exemplo. Ao contrário, o capitalismo liberal está pedindo agora que o Estado socorra as empresas, inclusive com dinheiro, assim como o SUS é quem está sendo chamado a acolher os doentes no Brasil frente à limitação dos planos privados de saúde. O capitalismo perde assim a voracidade e a mídia que o alimentou já não consegue mais vender esse peixe, passando a assumir a sua função de informar e analisar, de criar fórum público, ou seja, de mobilizar as pessoas em torno de campanhas para que uns cuidem dos outros, façam e distribuam máscaras, fiquem em casa. Eis o chamado controle cruzado de pares, outro valor caro ao jornalismo”, lembra a professora.
Lutar pelo futuro pós-coronavírus, a fim de que a volta à normalidade não seja a volta à pós-verdade ou à cortina de fumaça das fake news, é outra tarefa que o jornalismo promete tomar para si. “Para voltar ao polo ideológico e recuperar prestígio junto à opinião pública não foram poucos os jornalistas que, mais recentemente, se desligaram de instituições e empresas de comunicação para criar seus próprios canais de notícias e reportagens, buscando maior independência e credibilidade. Vide o The Intercept Brasil. Assim vieram a Marco Zero, cooperativa de jornalistas de Pernambuco, o Poder 360, de jornalistas que saíram da Folha de S. Paulo, e outras iniciativas afins. Isso vem se fortalecendo e acho que a cobertura acerca do coronavírus acelerou o processo em curso de requalificação do jornalismo. Não tem mais volta e a torcida é para que se aproveite essa oportunidade surgida ao revés”, conclui.
Educação digital já!
Extra! Extra! Mentira travestida de notícia pode matar. Eis o alerta fundamental que autoridades de saúde, pesquisadores, gestores públicos e jornalistas de todo o mundo vêm fazendo sempre que ocupam espaço nos meios de comunicação para disseminar informações sobre o novo coronavírus. Tão veloz quanto o recrudescimento da própria pandemia, o efeito de contágio das fake news segue maculando o processo de democratização da palavra, ao mesmo tempo em que ofusca uma possível luz no fim do túnel perseguida por quem busca verdades factíveis em meio ao quase total desconhecimento em torno da doença. Assim pensa a jornalista e pesquisadora Eulália Camurça, que tem como tema de pesquisa no doutorado em Direito Constitucional a questão da informação e da desordem informacional no Brasil.
“Antes, a gente seguia o modelo broadcast, em que a informação vinha de um ponto e se disseminava para um volume imenso de pessoas. A internet mudou esse paradigma. E hoje todos somos produtores de conteúdo, o que é absolutamente valioso, mas, como qualquer fenômeno comunicacional, traz também desafios. Dentre eles, a disseminação de informações que não são checadas ou tem o intuito de desinformar efetivamente. Em tempos de pandemia, isso pode salvar ou matar, já que, o tempo inteiro, via redes sociais, nos chegam informações de ditos especialistas e até promessas de curas milagrosas, quando a gente sabe que a ciência ainda busca caminhos para lidar com essa nova doença”, ressalta Eulália.
A preocupação de quem pesquisa e combate as fake news, portanto, é com as pessoas que não conseguem filtrar aquilo que é coerente e correto ao tentar se informar. Daí a importância de um jornalismo que siga critérios éticos e técnicos ao produzir conteúdo. “O usuário da internet deve procurar esse lugar seguro quando busca se informar e em meio à pandemia e são os meios de comunicação que mais têm atraído os olhares, justamente porque neles estão os jornalistas que escutam diversas fontes e checam várias vezes a informação, demonstrando todo um cuidado e comprometimento com a verdade factual”, sublinha, citando pesquisas que demonstram a retomada da confiança nos veículos tradicionais de comunicação, que se fortaleceram em meio à crise sanitária.
Para Eulália, também é animador perceber como os próprios sites e plataformas virtuais, inclusive internacionais, acabaram por disponibilizar informações e dossiês sobre o novo coronavírus gratuitamente. Mas ainda se faz necessário saber lê-los. “Tem havido cada vez mais essa preocupação em compartilhar saberes. E isso é muito valioso nesse cenário. No entanto, o mais importante me parece ser o processo de educação digital. Há uma falta de letramento enorme quando se fala em produção e disseminação de conteúdo, especialmente pela internet. E quando sugiro letramento digital é para as mais diversas profissões. Porque temos aí pessoas graduadas e pós-graduadas que também encaminham desinformações. Afinal, é importante a gente entender que esse fenômeno das fake news também passa pelo fluxo das paixões e nem sempre toca a racionalidade. Quero dizer que às vezes você dissemina algo porque aquilo lhe parece ter um sentido de verdade, mesmo quando pode se tratar de algo inverossímil”, analisa.
É de cada cidadão, portanto, a responsabilidade ética, mas também legal, sobre aquilo que se comunica, cabendo ao Judiciário, em última instância, aprender a barrar efetivamente os efeitos nefastos causados pelas notícias falsas. “Percebo com preocupação as leis aprovadas em diversos estados que criminalizam a disseminação de fake news, mas sem definir exatamente o que elas são e sem muito detalhamento sobre as regulamentações. Aí surgem questões: será que são constitucionais? Será que estão alinhadas com os direitos fundamentais? As instituições precisam aprimorar a legislação porque a desinformação se dá de diferentes maneiras e a gente tem que estar educado e atento em meio a esse processo de recepção da informação. Isso é muito desafiador: saber receber e compartilhar informações diante de tantas sutilezas, sobretudo nesse momento de pandemia global em que cada palavra importa, assim como cada vida importa. Portanto, a melhor maneira de combater a desinformação, além da educação, é com mais informação”, sustenta.
Como as fake news se apresentam
Em sua pesquisa, a jornalista Eulália Camurça se valeu da categorização empreendida pela também jornalista Clair Wandle para identificar seis diferentes tipos de fake news:
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A sátira ou paródia, que não tem intenção de causar mal, mas pode enganar
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A falsa conexão, que por meio de manchetes, imagens ou legendas dão falsas dicas sobre o que o conteúdo é realmente
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O conteúdo enganoso, que redunda no uso enganoso de informação contra um assunto ou pessoas
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O falso contexto, quando o conteúdo genuíno é de uma época, mas acaba sendo compartilhado em outro momento histórico como se fosse atual
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O conteúdo impostor, quando fontes têm seus nomes usados, mas com informações que não são suas
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O conteúdo manipulado, quando uma ideia verdadeira é manipulada para enganar o público