seg, 10 março 2025 11:37
Entrevista Nota 10: Aline Passos e os desafios dos neurodireitos no mundo do trabalho
Docente da Unifor e doutora em Direito do Trabalho discute os impactos da neurotecnologia e da inteligência artificial nos direitos fundamentais dos trabalhadores

A era digital tem transformado profundamente as relações sociais, e o mundo do trabalho não está imune a essas mudanças. Com o avanço das neurotecnologias e da inteligência artificial, surgem novas possibilidades e desafios que afetam diretamente os direitos fundamentais dos trabalhadores.
O monitoramento cerebral, por exemplo, já é realidade em algumas empresas ao redor do mundo, levantando questões sobre privacidade cognitiva, consentimento real e possíveis formas de discriminação neuronal no ambiente corporativo.
Nesse contexto, a professora Aline Passos, do curso de Direito da Universidade de Fortaleza, se destaca como uma das principais pesquisadoras na área de neurodireitos, explorando os impactos dessas novas tecnologias na esfera jurídica trabalhista.
Doutora em Direito do Trabalho pela Universidad de Salamanca, ela investiga as interseções entre neurociência e inteligência artificial, buscando antecipar os desafios ético-jurídicos e propor diretrizes para a proteção da dignidade humana diante do avanço tecnológico.
Sua atuação acadêmica inclui uma série de publicações sobre neurodireitos e proteção da privacidade no ambiente de trabalho, além da participação em projetos de pesquisa que analisam os limites e riscos da neurovigilância.
Recentemente, ela ministrou o workshop “Cérebros Vigiados: O Futuro do Controle no Trabalho”, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Unifor. O evento gerou debates sobre o impacto das neurotecnologias na relação entre empregador e empregado e discutiu possíveis caminhos regulatórios para garantir que essas inovações respeitem os direitos fundamentais dos trabalhadores.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, a docente compartilha sua visão sobre a privacidade cognitiva, os desafios da regulamentação das neurotecnologias no mercado de trabalho e os riscos de manipulação comportamental que podem emergir com o uso indiscriminado dessas ferramentas.
Confira a entrevista na íntegra
Entrevista Nota 10 — O conceito de neurodireitos ainda é relativamente novo, mas já vem sendo debatido em diversas áreas do conhecimento. Como surgiu o seu interesse por essa temática e quais foram os principais marcos da sua trajetória de pesquisa até aqui?
Aline Passos — Meu interesse pelos neurodireitos surgiu da necessidade urgente de repensar a proteção dos trabalhadores em um cenário de avanço tecnológico sem precedentes. A cada revolução industrial, vimos mudanças drásticas nas relações de trabalho, mas nunca antes a própria mente humana esteve em risco de monitoramento.
Minha trajetória acadêmica foi marcada pelo estudo das interseções entre direito do trabalho e direitos fundamentais. O uso da inteligência artificial e proteção de dados dentro do ambiente de trabalho me levaram a investigar como neurotecnologias aplicadas ao ambiente laboral desafiam direitos fundamentais como privacidade, dignidade e autonomia. A partir disso, venho publicando artigos que buscam não apenas compreender, mas antecipar e propor soluções jurídicas para essa nova realidade.
Entrevista Nota 10 — No projeto de pesquisa que você integra, a interface entre neurociência e inteligência artificial é apontada como um potencial risco à dignidade humana. Quais são os principais desafios éticos e jurídicos levantados por essa relação?
Aline Passos — A combinação de neurociência e inteligência artificial cria um novo patamar de vigilância, onde não apenas nossos dados, mas nossos próprios estados mentais podem ser acessados, analisados e até modificados. Os principais desafios éticos e jurídicos envolvem:
- Privacidade mental: até que ponto um empregador pode acessar os padrões cerebrais de um funcionário sem violar sua liberdade de pensamento?
- Consentimento real: o trabalhador realmente tem liberdade para recusar esse monitoramento sem sofrer consequências?
- Discriminação neuronal: se as empresas começam a selecionar funcionários com base em suas respostas cerebrais a estímulos, criamos uma nova forma de segregação.
- Manipulação comportamental: se a IA consegue prever ou influenciar estados emocionais, podemos estar à beira de uma nova forma de controle no ambiente corporativo.
Diante desses desafios, é essencial que o direito acompanhe esse avanço, estabelecendo limites claros e proteções robustas para que a inovação tecnológica não ultrapasse as barreiras da dignidade humana.
Entrevista Nota 10 — A neurotecnologia já está presente em diversos ambientes, incluindo o mundo do trabalho. Como o uso dessas tecnologias para monitoramento cerebral dos trabalhadores pode afetar direitos fundamentais e qual a importância da regulamentação nessa área?
Aline Passos — O uso da neurotecnologia para monitoramento no trabalho afeta diretamente direitos fundamentais, como:
- Privacidade cognitiva: se nossos pensamentos e emoções podem ser rastreados, o direito à intimidade desaparece.
- Autonomia do trabalhador: a liberdade de expressar ideias e tomar decisões pode ser comprometida se as empresas puderem detectar padrões cerebrais antes mesmo de uma ação ser tomada.
- Direito à não discriminação: trabalhadores podem ser avaliados com base em suas respostas cerebrais a estresse ou fadiga, o que pode levar a práticas discriminatórias na contratação e promoção.
A regulamentação é fundamental para definir o que pode ou não ser feito com esses dados cerebrais, quais limites devem ser impostos às empresas e como garantir que o consentimento do trabalhador seja real e não apenas uma formalidade contratual. Sem uma legislação forte, podemos entrar em um cenário distópico, onde o acesso ao emprego dependerá de abrir mão da privacidade mental.
Entrevista Nota 10 — No workshop “Cérebros Vigiados: O Futuro do Controle no Trabalho”, você abordou o impacto das neurotecnologias na relação entre empregador e empregado. Poderia destacar exemplos práticos que já estão sendo discutidos no cenário jurídico e como a legislação trabalhista pode se adaptar a essas mudanças?
Aline Passos — Alguns casos reais já estão levantando questionamentos no campo jurídico:
- China – Hangzhou Zhongheng Electric: a empresa monitora ondas cerebrais de funcionários para detectar emoções e estados de alerta. Isso gera um dilema: até que ponto um empregador pode influenciar ou mesmo modificar o estado mental do trabalhador?
- EUA – Ferrovia BNSF: multada por coletar dados biométricos sem consentimento explícito, o que abre precedentes para questionar o uso de neurotecnologias sem transparência.
- Chile – Marco Legal dos Neurodireitos: já há uma legislação pioneira para proteger a integridade mental dos cidadãos.
A legislação trabalhista precisa se adaptar urgentemente, incluindo regras para garantir que nenhum trabalhador seja obrigado a aceitar neurovigilância como condição de emprego; estabelecer que dados cerebrais são sensíveis e exigem o mais alto nível de proteção legal; e regular a coleta e o uso dessas informações, evitando que sejam usadas para demissões, avaliações de desempenho ou discriminação velada.
A grande pergunta é: até que ponto estamos dispostos a permitir que o trabalho invada a última fronteira da nossa liberdade, a nossa mente?
Entrevista Nota 10 — Seu trabalho acadêmico inclui artigos e publicações sobre neurodireitos e proteção da privacidade no ambiente de trabalho. Quais as principais tendências e preocupações jurídicas que você enxerga para os próximos anos em relação à proteção da privacidade cognitiva?
Aline Passos — Nos próximos anos, algumas tendências devem dominar o debate jurídico:
- Expansão da regulamentação: seguindo o modelo chileno, mais países devem criar leis para proteger a privacidade mental.
- Consentimento fortalecido: o conceito de “consentimento informado” será revisado para garantir que os trabalhadores não sejam coagidos a aceitar o monitoramento cerebral.
- Responsabilidade das empresas: será necessário criar mecanismos de fiscalização para evitar abusos e vazamentos de dados cerebrais.
- Integração entre neurodireitos e direitos digitais: a privacidade mental será vista como uma extensão da privacidade digital, reforçando sua proteção legal.
Se não avançarmos na proteção desses direitos, corremos o risco de normalizar um ambiente onde até os pensamentos podem ser vigiados.
Entrevista Nota 10 — O avanço da neurociência e das neurotecnologias levanta questionamentos que vão além do direito do trabalho, atingindo questões fundamentais de autonomia e identidade humana. Como você acredita que o direito pode acompanhar essas transformações e garantir um equilíbrio entre inovação e proteção dos direitos individuais?
Aline Passos — O direito precisa ser proativo e não apenas reativo. Algumas direções são essenciais: criação de um marco regulatório global, para evitar que empresas fujam de regulações nacionais; proteção específica para a privacidade mental, reconhecendo-a como um direito inviolável; punição severa para uso indevido de dados cerebrais, assim como acontece com crimes cibernéticos; fiscalização independente, para garantir que a coleta e uso dessas informações sejam éticos.
O grande desafio do direito será equilibrar inovação e proteção, garantindo que a neurotecnologia sirva à humanidade, e não o contrário. Como sociedade, precisamos decidir: queremos ser donos dos nossos pensamentos ou vamos permitir que eles sejam mercantilizados?