seg, 15 abril 2019 09:10
Entrevista Nota 10: Celma Prata e o romance do jornalismo com a literatura
A vida (re)começa prazerosamente aos 50. Pelo menos é isso que a trajetória da jornalista e escritora Celma Prata faz crer. Ela tinha 51 anos quando decidiu se graduar em Jornalismo na Unifor, tornando-se colega de sala e de profissão da própria filha. Diante do exercício da escrita jornalística e do particular interesse pelo jornalismo literário, foi além, passando a flertar com a literatura. E nem bem saiu da faculdade já publicou seu primeiro livro de crônicas, Descascando a Grande Maçã (Editora Sete 7, 2012). Ano passado, lançou sua primeira obra de ficção, classificada como um romance policial: “O Segredo da Boneca Russa” é uma metáfora e a chave do mistério que está por trás de um crime a ser desvendado por uma francesa em terras brasileiras.
Para além da trama policialesca, a autora mergulhou fundo em capítulos da história do Brasil que até hoje também esperam ser melhor desvendados. A ditadura militar brasileira é o pano de fundo do romance que promete trazer aos leitores muito mais do que horas de suspense e distração. Nele, fatos reais do período político mais sangrento e nebuloso do País vêm à tona para despertar, no mínimo, curiosidade entre aqueles que não viveram o período ou pouco sabem a respeito.
Integrante da Sociedade Amigas do Livro, composta por 40 escritoras que se reúnem assiduamente na Academia Cearense de Letras, Celma Prata acabou de lançar “O Segredo da Boneca Russa” no Salão do Livro de Paris. Lá, foi prestigiada por ninguém menos do que Conceição Evaristo, a escritora brasileira mais respeitada na Europa atualmente. Ambas, a seu modo, escrevem movidas pelo espírito do nosso tempo. E para que sonhos não acabem.
Entrevista
Você ingressa na graduação em Jornalismo após os 50 anos e, tocada por essa experiência, mergulha na carreira literária e lança seu primeiro romance, “O Segredo da Boneca Russa”. Qual o efeito transformador dos estudos na maturidade?
CELMA PRATA - Olhando para trás, vejo que foi um processo. Pode até parecer, para o senso comum, que é tardio, isso se você tomar como referência apenas a idade cronológica... A primeira graduação foi muito jovem, tinha acabado de fazer 21 anos quando me formei em Pedagogia na UFC. Logo em seguida me casei e comecei a trabalhar na área, primeiro domo Técnica de Educação da Secretaria de Educação e depois como vice-diretora de uma escola púbica. Então, eu tive essa bagagem de educadora. Sou filha de professora de escola primária, então eu tinha essa vivência em casa. A minha irmã também é professora. Aí teve um tempo em que o Governo do Estado criou um programa tentando enxugar a folha e ofereceu a chance para os professores que quisessem se afastar ser exonerados. Assim, quem tinha condições de pensar em uma outra forma de vida aderiu e eu aderi. Então foram cinco anos afastada, porque você não poderia retornar até o final da licença. Nesses cinco anos surgiu a oportunidade de eu viajar para Nova Iorque com meus filhos e fui fazer um curso de marketing, na Universidade de Nova Iorque. Nisso eu já estava com quase 40 anos. Aí tive essa experiência maravilhosa, meus filhos foram para a escola pública lá e passei quase um ano. Era um curso de extensão, não era um curso de graduação, mas de altíssimo nível e isso me ajudou muito. Quando cheguei, fui convidada para montar um Departamento de Marketing em uma empresa. Então, essa foi a minha primeira inserção no setor privado, onde trabalhei por muito tempo. Aí chegou o momento de voltar para a educação e eu voltei. Anos depois me aposentei. Quando eu estava para me aposentar, eu já trabalhava como revisora de um jornal voltado para o agronegócio, mas era uma coisa que eu fazia em casa, ligava o computador e era tranquilo. Aí eu resolvi fazer o vestibular. Não era vestibular, propriamente, porque eu poderia entrar como graduada, e assim entrei na Unifor. A minha filha tinha acabado de entrar no jornalismo. E eu acabei entrando também, em 2007, entendendo que o jornalismo já vinha presente em minha vida, através de escrita e da comunicação com as pessoas. Estava latente ali. Eu tinha então 51 anos e me identifiquei demais com o jornalismo, muito mesmo.
Com o que exatamente?
CELMA PRATA - Primeiro teve a alegria de terminar a graduação junto com minha filha, Camila. E uma das boas surpresas foi que tirei a maior nota do Centro, ganhei até uma bolsa de pós-graduação. Fiquei muito gratificada, porque era eu e aqueles meninos, da idade da minha filha. E eu nunca fui aquela aluna nota 10 quando jovem. Estudava, passava ali na média e era só isso mesmo. Não era o meu foco não era estudar para ser a primeira. Na maturidade não sei se eu quis me redimir e acabei conquistando isso, que para mim foi a glória. Fiquei muito feliz.
A partir daí é que você se lança à literatura?
CELMA PRATA - Durante o curso de jornalismo eu despertei para isso e logo que graduei me senti apta a publicar meu primeiro livro. Terminei em 2010 e em 2012 decidi contar a experiência da vida em Nova Iorque em um livro de crônicas. E foi muito bem recebido. Acho que porque era mais do que um guia, era mais uma história de vida mesmo, de como uma família brasileira viveu ali. Então, o jornalismo despertou em mim essa vontade de escrever. E a partir daí, mesmo aos 50 anos, desconstruí muita coisa. Passei a perceber a vida de outra forma. A experiência que eu tive em Nova Iorque foi o início disso. Fiz amizades com pessoas de várias nacionalidades, com bagagens diversas, diferentes origens e pensamentos, mesmo religiosos e ideológicos. Eu fui aquela adolescente um pouco rebelde, mas depois que entrei na idade adulta fiquei acomodada, vamos dizer, naquela vida certinha, casamento, filhos, trabalho, só aquilo ali. Eu percebo que essa série de coisas que eu fiz depois dos 40 anos - morar em Nova Iorque, fazer jornalismo –ampliou minha visão de mundo. Essa coisa de você ter uma múltipla visão da vida faz com que você não envelheça. Eu tenho 62 anos e me considero jovem. Meu pensamento é jovem, é contestador. Então, às vezes, estou arrodeada de pessoas que têm a minha mesma idade cronológica e estou sempre contestando. Já sou até conhecida: ‘É porque você é jornalista. Jornalista é assim. Jornalista contesta demais’.
E como nasce o romance na cabeça da jornalista com fama de contestadora?
CELMA PRATA - É um romance de quase 400 páginas. Comecei em 2014 e demorei quatro anos para terminar. E quando comecei, já tinha em mente que eu teria uma personagem francesa, porque antes de Nova Iorque eu fiz uma viagem a Paris com meus filhos e me apaixonei pela cidade e por tudo o que ela representa, não apenas pela beleza estética, mas por aqueles valores que sempre busquei na vida e eles enaltecem desde a Revolução Francesa: igualdade, fraternidade e liberdade. Aquilo ali me encantou e, muitos anos depois, quando decidi escrever uma ficção, um sonho ousado que eu achava que jamais seria capaz de realizar, aquele cenário me inspirou. Mas, ao mesmo tempo, veio à tona a jornalista contestadora e resolvi contextualizar em um período que só muito tempo depois eu percebi que tinha sido horrível para o nosso País: a Ditadura Militar. Quer dizer, é um romance de ficção, mas que demandou uma acurada pesquisa histórica. E a maneira que eu encontrei de juntar essas duas pontas foi a narradora do romance ser uma historiadora francesa. Ela é filha de uma brasileira que se autoexilou em Paris durante a Ditadura.
É um romance que tem a Ditadura brasileira como pano de fundo, então. Mas por que você quis voltar a olhar justo para esse período da nossa história?
CELMA PRATA - É uma ficção, um romance, mas ele está contextualizado. Tem fatos que realmente aconteceram. Mas todo o resto, todo o diálogo, tudo é ficção. Eu sabia pouco sobre aquele período, porque no golpe militar eu tinha de sete para oito anos. Para mim aquilo foi uma coisa inexistente, não me atingiu diretamente. Mas como eu falei, tenho esse espírito questionador, apesar de eu não ter vivido esse período e somente depois da idade adulta ter tomado conhecimento. Quando veio a abertura com as Diretas Já é que comecei a despertar para isso. Puxa, acho que em 1989 foi a primeira eleição. Eu tinha mais de 30 anos. Então o que acontecia ali? A gente não tinha direito de escolher um presidente e aquilo começou a me incomodar. Depois eu lembro que a gente lia literatura escondidos, porque as escolas na minha época, a minha era religiosa, baniram muito a literatura. Jorge Amado era proibido, porque ele tinha um vocabulário que não era apropriado para as meninas, na época. Aquilo me incomodava. Aí eu lia escondido. A primeira coisa que uma ditadura de direita faz é cortar a arte, porque é a arte que faz você perceber o mundo de forma diferente.
A censura e a restrição das liberdades marcaram pessoalmente então?
CELMA PRATA - Isso! Mesmo já sendo uma menina com mais de 15 anos eu lia escondido mesmo e questionava o por quê. Não que minha mãe e meu pai fossem procurar por aquilo ali, mas eu sabia que não era adequado para a minha idade. Então eu fumava escondido, bebia escondido, bem jovem, menor de idade. E era algo que fazia parte da minha geração. Assim também como o medo. Não sei de onde vinha o medo, eu não tinha ciência disso. Mas essa coisa de ser medroso sei que a gente herdou dessa censura, dessas proibições, dessa educação que limitava muito o pensamento. Isso para quem tem o espírito contestador é uma facada.
Mas o que você descobriu em suas pesquisas sobre a ditadura militar brasileira que desaguou no romance?
CELMA PRATA - Uma coisa que me deixou assim, não sei se revoltada ou sem entender, é porque nós tivemos a Lei da Anistia e em outros países, vizinhos nossos, isso foi levado adiante, mas aqui não. Rever esse período e punir quem tinha levado o Estado brasileiro a usar a tortura como se fosse uma prática normal, deveria ser fundamental. Tortura é uma coisa que você não pode fazer com ninguém, nem com bandido, nem com quem não é bandido. É uma coisa que eu não posso imaginar. E as pessoas não sabem como eram as torturas. Eu tenho certeza que as pessoas não sabem, porque se soubessem... Agora, por conta dessa declaração do presidente Bolsonaro, quando ele falou que aqui não teve ditadura e tal, aí começaram a surgir uma série de depoimentos que são chocantes. Gente, é tão degradante no livro “Brasil Nunca mais”, no prefácio do Paulo Evaristo Arns, ele diz que quando a pessoa ou quando o torturador tortura a primeira vez, a segunda, a terceira vez, ele se bestializa tanto, que ele é capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da família dele. Isso é um processo de degradação humana, realmente. Por que que no Brasil não se levou à frente isso? Tentou-se, mas não se conseguiu chegar... Ah, porque a Lei da Anistia abarrou. Anistiou todo mundo. Os subversivos também, os terroristas, como eram chamados, também não fizeram as suas maldades, os seus crimes? Mas essas pessoas foram punidas. Elas foram presas, foram deportadas, foram assassinadas. Elas foram punidas de alguma forma. E da parte dos militares? Não houve isso. Esqueceram, deixaram para lá. E só foram falar em Comissão da Verdade e sobre Direitos Humanos há pouco tempo.
Foi muito recentemente e, na verdade, a Comissão Nacional da Verdade já foi totalmente silenciada...
CELMA PRATA - Muito recente. Por que a gente não reviu isso aí? Tem tanta coisa que precisa ser dita, que precisa ser esclarecida para essas novas gerações. Não acho que dá para você ficar tranquilo em um mundo com muita diferença social. Não é bom para ninguém. Se você não se sensibilizar com milhões de pessoas em situação de miséria é porque você não vai se sensibilizar com mais nada. Você não pode achar que isso é normal, que é natural. Ah não, mas é porque tem que ter pobre e tem que ter rico. Ok! Mas não é nem disso que eu estou falando, eu estou falando é dos extremos. Você ser arquimilionário e você não ter nada. Como é que você vai dormir à noite? Eu não consigo entender. A miséria no Brasil é uma coisa antiga? Sim e porque é antigo a gente não vai lutar para mudar isso? Vamos priorizar só o capital, os empresários? Eu não acho que isso seja o caminho. Então penso nos jovens, hoje se fala muito que as universidades formam para o mercado. Então acho que a vida tem que ser mais do que isso. Você não pode perder esse lado humano, essa coisa de sonhar, de ficar feliz com coisas simples. Eu não queria que esse sonho acabasse. Não, essa coisa de Marxismo, Leninismo, acaba com isso, que isso aí já era. Agora tem que ser é neoliberalismo, tem que pensar como os Estados Unidos. Eu digo: será?
E será que ainda não viramos essa página?
CELMA PRATA - Não. Não viramos porque não fomos até o fim. Tivemos um governo de esquerda que poderia ter levado isso adiante. Mas para você ver como é difícil, porque há de se atender a vários interesses, muitos poderes. Então eu não podia me afastar dessa linha do romance policial, do livro de suspense, de ficção. Mas a história entra para despertar a curiosidade e levar o leitor a pesquisar mais. Dizer: “poxa, não foi isso que a escola me ensinou, não foi isso que eu aprendi”. Pelo contrário, meus pais chamavam revolução. Minha mãe chama revolução até hoje. E muitos amigos, um pouco mais velhos do que eu, chamam revolução. E agora vem esse atual governo e essa nova linha política, que usa a palavra revolução. Eu fico assim pensando no que isso vai dar.