Entrevista Nota 10: Fernanda da Escóssia

qua, 13 maio 2020 11:18

Entrevista Nota 10: Fernanda da Escóssia

Editora do site da Revista Piauí fala sobre a importância de reportar informações em tempos de pandemia.


Fernanda da Escóssia é doutora em História, Política e Bens Culturais. Trabalhou nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo (Foto: Divulgação)
Fernanda da Escóssia é doutora em História, Política e Bens Culturais. Trabalhou nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo (Foto: Divulgação)

Há de se dar rosto à pandemia que só cresce em números. Como editora do site da revista Piauí, a jornalista Fernanda da Escóssia é sensível a esse chamado, respondendo por uma diferenciada e humanizada cobertura factual em torno das interrogações e reticências que o novo coronavírus suscita a cada dia. Para ela, vem sendo no mínimo desafiador atuar como jornalista em um momento histórico em que a informação voltou a ser vista como essencial e o jornalismo recuperou o genuíno interesse pela dimensão emotiva dos fatos, ao mesmo tempo em que voltou o foco para os vínculos comunitários e vem buscando reaver valores e práticas que pareciam haver se pulverizado em meio à ubiqüidade das tecnologias midiáticas. 

Graduada em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Fernanda da Escóssia é doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e mestra em Comunicação pela UFRJ. Trabalhou nos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e O Povo, em Fortaleza. Em entrevista ao portal da Universidade de Fortaleza (Unifor), ela narra o dia a dia da redação, faz a crítica do próprio ofício e, por fim, indica links de reportagens que dizem sobre os solavancos que a pandemia promove sobretudo na periferia do Rio de Janeiro. 

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Qual o papel social que o jornalismo vem tomando para si desde que o coronavírus chegou ao Brasil? De que forma teve que se adequar para noticiar a própria incapacidade da Ciência e das instituições para dar respostas à sociedade? Mudaram os “protocolos”, para usar um termo do vocabulário médico?

O jornalismo sofre um golpe duro com a pandemia, porque a circulação física dos profissionais em busca de informações fica comprometida. Você usou a palavra protocolo, e estamos vendo que os protocolos foram alterados. Há desde repórteres de máscara na TV até o uso muito maior de entrevistas por telefone e vídeochamada. Sobre adequações, há muitas outras, já que estamos trabalhando de casa. Sou editora do site da revista Piauí. A revista impressa liberou todos os seus conteúdos sobre Covid-19. Na plataforma digital, concentramos o trabalho na cobertura da pandemia. Sobre a rotina de produção, estamos trabalhando de casa, com reuniões diárias por áudio. Ao mesmo tempo, um desafio enorme foi posto diante de nós: continuar informando diante de todas as restrições impostas pela pandemia. Valorizo muito o trabalho dos colegas que estão nas ruas, buscando informação. Para eles também há risco. O papel social do jornalismo se sobressai nesse momento, permitindo que a gente perceba que a informação é, sim, um serviço essencial – e mais essencial ainda nesse momento. Mais do que informar apesar das dificuldades, temos de informar justamente por causa das dificuldades, pelo conjunto de problemas que o mundo está enfrentando no momento. Uma coisa sempre tive clara, desde que cobria Cidades, e havia enchentes, chacinas... quando há notícia, aí é que o jornalista é mais necessário. Aí é que o jornalista tem que ser jornalista. 

A chamada era dourada da informação acessível e fragmentada, onde toda uma sorte de conteúdos está mais disponível do que nunca, se viu assolada pelo vírus das fake news. Mas ao que tudo indica, em meio à crise sanitária, são justamente os veículos tradicionais de massa que aparecem como replicadores dos dados oficiais e das notícias rigorosamente checadas. Há aí uma tendência de recuperação de certo protagonismo da grande imprensa no processo de interpretação dos fatos?  

Há algum tempo o jornalismo profissional e o público vêm sendo acossados pela desinformação, e esse é um fenômeno mundial. No Brasil, na eleição presidencial de 2018, os conteúdos falsos tiveram protagonismo na campanha.  Agora, com a crise sanitária, o jornalismo profissional se fortalece e tem a chance de retomar seu protagonismo diante dos replicadores e repassadores de conteúdos falsos. Mais do que nunca, produzir informação correta e confiável é fundamental para a saúde da população. Ao mesmo tempo, vale reparar que figuras públicas têm alimentado a disseminação de conteúdos comprovadamente falsos ou, no mínimo, duvidosos.

É possível já se vislumbrar um modo de fazer jornalismo antes e depois da pandemia?

Em várias áreas haverá um antes e depois da pandemia, mas ainda não sabemos ao certo como será. Na pós-pandemia, como ficarão o trabalho, o futebol, o carnaval? As primeiras análises mostram que o trabalho à distância tende a se fortalecer, ainda que as condições dessa mudança não estejam claras. Para o jornalismo, a pandemia traz preocupações variadas também, da receita dos veículos à manutenção dos empregos, passando pelo trabalho de reportagem em si, a apuração, a busca por informação. Uma reportagem feita apenas por telefone, sem ir aos lugares sobre os quais está se falando, perde muito, e o leitor perde também. Por outro lado, é fundamental que, na apuração a distância, a checagem de informações seja reforçada. As reportagens em profundidade, o convívio com outros colegas, a troca de ideias, como será tudo isso daqui a um ano? Vamos esperar um pouco. Desejo que em breve possamos retomar condições de trabalho com segurança sanitária.

O jornalismo ainda é capaz de, além de informar, ajudar a construir uma esfera pública e um sentimento de comunidade necessários para fazer valer novos modos de ser e de estar no mundo? Penso aqui num grau de civilidade e numa noção de coletividade e responsabilidade social que ainda me parecem frágeis no Brasil...

Momentos de crise servem para nos abrir os olhos. Como estivemos cobrindo as periferias? Que espaço há, no jornalismo profissional, para ouvir outras vozes? Qual o impacto da desigualdade brasileira nas mortes causadas pela pandemia? Diante da dificuldade de circulação, que meios achamos para contar o que está acontecendo nos bairros mais pobres – que, em muitas cidades, são justamente os que acumulam mais mortes? Relatos dos moradores desses bairros são fundamentais nesse momento, e alguns veículos tiveram a preocupação de abrir espaço para essas vozes.

Por último, há ainda que se tocar na crise política em meio à crise sanitária. Qual o papel dos media nesse fogo cruzado quando a ordem é defender a vida e não macro interesses de praxe?

São duas crises para cobrir, a crise política e a crise sanitária, e os entrelaçamentos entre elas. Uma pandemia gerida pelo governo Bolsonaro é pandemia ao quadrado, e cabe ao jornalismo estar atento a esse conjunto de informações. Mostrar o avanço da doença, as mortes, o sofrimento das pessoas, as medidas de prevenção, o que governo tem feito, como o presidente descumpre as medidas sanitárias... e acompanhar os estudos científicos, as pesquisas, o debate sobre remédios, vacinas, além de toda a mudança comportamental, inclusive o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas. Como jornalista, nunca tinha vivido uma situação assim, uma cobertura intensa em condições de trabalho completamente atípicas. Estou aprendendo muito. Ao mesmo tempo, sinto que o jornalismo é fundamental, e meu entusiasmo pela profissão acabou se renovando nesses tempos tão tormentosos.