Entrevista Nota 10: Julien Prieur e a formação em direito ambiental para um desenvolvimento sustentável
seg, 26 agosto 2024 11:31
Entrevista Nota 10: Julien Prieur e a formação em direito ambiental para um desenvolvimento sustentável
Professor e ecologista francês fala sobre os desafios do direito ambiental na transição ecológica e pontua o papel da formação acadêmica para a construção de um futuro mais sustentável
Os efeitos da crise climática já é uma realidade incontestável sentida cada vez mais em todo mundo. As transformações necessárias para viabilizar um futuro possível e sustentável estão sendo gradativamente implementadas por diversas iniciativas internacionais, principalmente por parte dos governos de muitos países, que utilizam o direito ambiental para orientar os planos de transição ecológica.
Mas para o ecologista francês Julien Prieur, o termo “transição ecológica” não é adequado, pois não questiona o modelo atual de desenvolvimento que continua gerando pobreza, desigualdade e problemas ambientais.
“Esta transição apenas permite, na minha opinião, poluir um pouco menos para poder poluir por mais tempo. Dada a situação ambiental global atual, seria mais apropriado mobilizar uma ‘revolução ecológica’. As mudanças necessárias não podem ser suaves, como sugere a ideia de uma transição feliz e jubilosa”, explica o também consultor em Direito de Desenvolvimento Sustentável e Transição Ecológica.
Doutor e mestre em Direito pela Université de Limoges, na França, Julien é professor da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Até dia 16 de outubro, ele estará na Universidade de Fortaleza para ministrar as aulas da disciplina de Direito Ambiental do curso de Direito e também do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) (mestrado e doutorado).
Já no dia 12 de setembro, às 15h, o ecologista ministrará a palestra Sustainable Development Goals and their applicability in the Unifor curriculum (Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e sua aplicabilidade ao currículo acadêmico) na sala B-47, no bloco B do campus da Unifor. Voltado para coordenadores, assessores e professores em geral, o momento integra a programação do II Encontro de Curricularização da Internacionalização (ECOI), promovido pelo Núcleo de Estratégias Internacionais (NEI).
Na Entrevista Nota 10 desta semana, Julien fala sobre os desafios do direito ambiental na transição ecológica e o papel da formação acadêmica para construção de um futuro mais sustentável.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Como o senhor enxerga a importância da integração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) ao currículo acadêmico, especialmente no contexto de uma universidade brasileira como a Unifor?
Julien Prieur — O que é interessante nos ODS é que eles são um “guideline” comum a todos os Estados, definido pelas Nações Unidas. Os Estados que se comprometem recebem muita assistência financeira e técnica; isso não é pouco! Em breve, os bancos só financiarão projetos que se enquadrem nas categorias dos ODS, baseados em critérios e indicadores predefinidos, que são muitos.
Embora haja uma parte de utopia nos ODS, algumas das mudanças propostas vão em direções interessantes. Por exemplo, o desenvolvimento de serviços públicos (meta 9) ou a educação para todos (meta 4). Aliás, quem não apoiaria essa meta em particular? Ela visa garantir acesso universal a uma educação de qualidade, promovendo igualdade e oportunidades de aprendizado ao longo da vida. A ONU destaca a educação como fundamental para alcançar outros objetivos de desenvolvimento sustentável, como a redução da pobreza e das desigualdades, e para promover a paz e a tolerância na sociedade.
É louvável que as Nações Unidas tenham estabelecido objetivos comuns para todos, mesmo que tenham sido principalmente definidos pelos países ocidentais. Além disso, houve melhorias nos ODS 2015-2030 em relação aos seus predecessores, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). Os jovens de hoje, sejam brasileiros, malgaxes ou da Costa do Marfim, terão que buscar profissões do futuro que estejam alinhadas com os ODS, seja na inovação, pesquisa, artes ou serviços, incluindo trabalhos manuais valorizados, cuidados com pessoas idosas e serviços de saúde. São profissões que têm um impacto humano positivo e são úteis para os outros.
Além disso, os ODS facilitam a cooperação entre estabelecimentos educacionais, entre regiões e Estados, e ajudam a equiparar diferentes currículos. Podemos considerar também que os ODS visam alcançar um objetivo final que é difícil de discordar: promover um “mundo viável”. Dado as ameaças que enfrentamos, este objetivo geral ainda tem um amplo apoio entre os Estados, embora não haja uma governança global clara.
Entrevista Nota 10 — Quais são os maiores desafios enfrentados por países em desenvolvimento, como o Brasil, na implementação de políticas de transição ecológica? Como as instituições de ensino superior podem contribuir para superar essas barreiras?
Julien Prieur — Permita-me fazer uma observação inicial. Pelo que sei, o Brasil não é mais considerado um país em desenvolvimento! Caso contrário, não estaria incluído no grupo dos BRICS nem no G20. Além disso, acho urgente abandonarmos a visão binária de “países desenvolvidos” e “países em desenvolvimento”. Este conceito antiquado, criado pelos países ocidentais que tinham interesse em manter outros Estados como subdesenvolvidos para garantir seus próprios interesses, não é mais adequado. Hoje, todos os Estados seguem o modelo de “desenvolvimento” que podem. A verdadeira questão é: o que exatamente entendemos por desenvolvimento? E desenvolvimento para quem e com quem?
Creio que seria mais interessante falar em “projeto de evolução” ou “projeto de sociedade”, este último conceito definido pelo sociólogo Edgar Morin. Mais do que nunca, é crucial redistribuir de forma eficaz as riquezas geradas por todos os atores para finalmente erradicar a pobreza, que ainda é uma doença no mundo em 2024.
Da mesma forma, o termo “transição ecológica” – lançado na Rio+20, no documento final The Future We Want – não é adequado, pois não questiona o modelo atual de desenvolvimento que continua gerando pobreza, desigualdade e problemas ambientais. Esta transição apenas permite, na minha opinião, poluir um pouco menos para poder poluir por mais tempo. Dada a situação ambiental global atual, seria mais apropriado mobilizar uma "revolução ecológica". As mudanças necessárias não podem ser suaves, como sugere a ideia de uma transição feliz e jubilosa.
Se deixarmos de lado esses pontos, que são fundamentais, a implementação de políticas de transição ecológica é de qualquer forma muito complexa, especialmente em um país federalista como o Brasil. O Estado ainda pode liderar e tornar todas as políticas públicas mais verdes? Pode, por exemplo, impor transporte público acessível a todos? Garantir acesso à água barata para todos? Construir escolas e hospitais em todas as regiões? Ele tem os recursos necessários?
Os desafios são consideráveis, mas não são insuperáveis. É essencial ter uma governança social, ambiental e econômica transparente e eficaz, com atores públicos e privados que se enriqueçam mutuamente e cooperem. A corrupção, é claro, não pode ter voz. No entanto, os principais desafios para o Brasil, na minha opinião, continuam sendo a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza, que não diminui na medida necessária para alcançar as metas dos ODS. Em termos financeiros, acredito que é mais uma questão mal colocada, desde que o “projeto de evolução” coletivamente proposto seja aceito, seja em nível local, estadual ou nacional. Especialmente porque o Brasil possui riquezas incríveis, incluindo do ponto de vista estritamente econômico. Trata-se, antes de tudo, de redistribuir para o bem comum e com um objetivo comum.
Instituições de ensino superior como a Unifor são atores incríveis e continuam sendo peças essenciais nesta transição ecológica. Mesmo enfrentando desafios conhecidos, essas instituições têm legitimidade para encontrar soluções para suas dificuldades. Elas podem inovar em todos os aspectos, incluindo o uso de espaços ao ar livre ou locais incomuns para aulas, caso haja problemas com espaços físicos. Elas também podem harmonizar as taxas de matrícula para oferecer oportunidades a quem não pode pagar. Além disso, ao contrário das universidades francesas, acredito que as instituições de ensino superior no Brasil têm mais oportunidades para desenvolver parcerias público-privadas e trabalhar a partir de suas regiões.
Entrevista Nota 10 — Em sua opinião, qual é o papel dos cursos de Direito, em especial nas disciplinas de Direito Ambiental, na formação de profissionais capazes de liderar a mudança rumo ao desenvolvimento sustentável?
Julien Prieur — A “revolução energética e ecológica” necessária exige não apenas possuir habilidades diversas, mas principalmente ser capaz de compreender a complexidade em qualquer nível – seja em uma empresa, ONG ou administração. No centro dessa complexidade estão, entre outros aspectos, as questões ambientais, muitas vezes expressas de maneira simplificada pela questão climática. A aplicação prática das normas de direito ambiental, que quase todas derivam das Nações Unidas (existem mais de 300 tratados ambientais globais), é uma condição indispensável para conduzir a mudança em direção ao desenvolvimento sustentável. Embora não seja a única condição, é imprescindível.
Para encontrar soluções e compromissos diante dos desafios atuais e futuros, é crucial ter um profundo conhecimento da regulamentação ambiental. Esta regulamentação é fundamental para prevenir, reduzir, antecipar ou remediar problemas ambientais. Além de conhecer as regras, é essencial compreendê-las e dominar as nuances do direito em geral e do direito ambiental em particular. É primordial integrar currículos de direito ambiental nos programas de formação de engenheiros e em profissões técnicas, independentemente de sua área de atuação.
O direito ambiental não apenas contribui para garantir uma forma de paz social em torno de questões locais e globais, mas também pode modificar comportamentos individuais e corporativos, inclusive através de medidas coercitivas. Assim, mesmo que às vezes possa parecer utópica, a norma ambiental, quando pertinente, coerente e aplicável, pode orientar o mundo dos negócios e das indústrias. Nesse sentido, os programas universitários desempenham um papel fundamental ao educar, conscientizar e formar profissionais no campo do direito ambiental.
Entrevista Nota 10 — Como as discussões sobre desenvolvimento sustentável e transição ecológica, promovidas no ambiente acadêmico, podem impactar de forma prática a sociedade e influenciar políticas públicas eficazes?
Julien Prieur — Esses debates são essenciais no mundo acadêmico porque levantam questões reais e genuínas. Mesmo que seja utópico pensar que o desenvolvimento possa ser verdadeiramente sustentável, esse conceito ainda encontra consenso. Os jovens estão muito conscientes disso. Graças ao consenso, ainda que tênue, sobre a transição ecológica, os jovens sabem que enfrentarão problemas complexos e que precisarão “pensar como renas” - ou seja, inovar, ser astutos, criativos, inclusive socialmente, e fazer mais com menos (recursos naturais, energia etc) para encontrar soluções viáveis e sustentáveis em um mundo mais restrito.
O que traz um pouco de otimismo é que o futuro deles, mesmo desafiado por todos os problemas ambientais que não diminuirão nem serão completamente resolvidos, oferecerá um terreno para desenvolver soluções inteligentes. Eles serão incentivados a fazer “tão bem” ou “melhor” com “menos” recursos. É um desafio significativo para eles, e as universidades devem ajudá-los fornecendo as ferramentas intelectuais adequadas. Este é também o objetivo do ODS 4.
Portanto, é crucial que as instituições de ensino superior preparem os estudantes não apenas com conhecimentos técnicos, mas também com habilidades de pensamento crítico, inovação e resolução de problemas complexos, para que possam contribuir efetivamente para um futuro sustentável e resiliente.
Entrevista Nota 10 — Que exemplos concretos de sucesso o senhor poderia citar sobre a aplicação dos ODS em currículos acadêmicos ao redor do mundo, e como essas experiências podem ser adaptadas para a realidade brasileira?
Julien Prieur — Existem múltiplos modelos assim pelo mundo, em todos os continentes. No entanto, o Brasil não tem nada a invejar aos outros. Parece-me que a Unifor já oferece soluções incrivelmente pertinentes que poucas universidades, pelo menos na Europa, proporcionam. O modelo de campus que promove o desenvolvimento inclusivo é excepcional.
Seria adequado começar com questões locais, do território, sejam elas sociais ou ambientais. Os desafios do direito ambiental oferecem perspectivas reais. Por exemplo, abordando casos específicos como gestão da água ou áreas úmidas, e adotando uma visão transversal, esses temas já abrangem quase todas as metas dos ODS. Da mesma forma, questões como conflitos de terra, erosão ou má governança podem servir como pontos de partida para projetos relevantes aos ODS.
René Dubos disse na Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1972 que era necessário “pensar globalmente, agir localmente”! Acredito que esta citação ainda seja muito atual, especialmente porque muitas vezes nossos líderes políticos fazem ouvidos moucos e as soluções para nossos problemas geralmente precisam ser resolvidas em nível local.