seg, 18 dezembro 2023 11:10
Entrevista Nota 10: Lara Vieira e os direitos dos superendividados no Brasil
Doutora e mestre em Direito, ela pontua as mudanças significativas trazidas pela Lei do Superendividamento e aponta caminhos para a resolução do problema no país
Comprar produtos e contratar serviços são atividades que regem a sociedade de consumo. Entretanto, ainda que estas ações ocupem papel significativo na vida das pessoas, impactando a maneira como se relacionam entre si, o outro lado da moeda traz um grave problema econômico e social da contemporaneidade: o superendividamento de consumidores.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), um indivíduo é considerado superendividado quando sua renda não é o suficiente para pagar todas as dívidas, a ponto de não conseguir quitar contas básicas, como alimentação e moradia, e colocar em risco sua sobrevivência.
Em junho de 2023, dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) apontaram que o número de endividados no Brasil tinha chegado a 78,5%. Desse total, 18,5% afirmaram estar “muito endividados”, maior percentual já registrado desde janeiro de 2010.
Ainda que o problema do superendividamento seja complexo em sua natureza, as principais causas para o surgimento e crescente evolução desses números englobam, como aponta a professora Lara Vieira, a publicidade excessiva, a concessão fácil e irresponsável do crédito e a falta de informação e educação para o consumo.
Em busca de reduzir o número de endividados e inadimplentes no país, foi aprovada, em 2021, a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.871). A norma atualizou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), introduzindo estratégias de prevenção e tratamento ao superendividamento. Porém, ainda que a lei represente uma vitória para os consumidores, a porcentagem de brasileiros endividados continua a subir.
“A nova lei estabelece medidas importantes para prevenção e tratamento do problema, mas seus efeitos, além de limitados, não são imediatos, pois implicam em mudança na cultura do endividamento, já tão arraigada no nosso mercado”, aponta a coordenadora do curso de Direito da Universidade de Fortaleza.
Em novembro de 2023, Lara lançou o livro “Os direitos do consumidor superendividado no Brasil - Estudo à luz da Lei do Superendividamento”, fruto da sua tese de doutorado. A obra visa apontar alternativas para a solução efetiva do superendividamento dos consumidores no Brasil, sob a premissa da dignidade da pessoa humana, a partir da análise minuciosa da legislação vigente.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, a doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) pontua as mudanças significativas trazidas pela Lei nº 14.871, e aponta caminhos para a resolução do superendividamento no Brasil, além de citar iniciativas da Unifor que oferecem assistência jurídica e apoio aos consumidores.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Em novembro deste ano, você lançou o livro “Os direitos do consumidor superendividado no Brasil - Estudo à luz da Lei do Superendividamento”, fruto da sua tese de doutorado, e a temática já é seu objeto de estudo desde o mestrado. Você poderia falar sobre como surgiu o interesse pelo assunto?
Lara Vieira — Comecei a me interessar pelo assunto ao atuar em um escritório de advocacia cuja especialidade era a cobrança extrajudicial e judicial de dívidas de consumo, como as decorrentes do fornecimento de energia elétrica, água e esgoto, plano de saúde e cartão de crédito. Ao ingressar no mestrado, tive a oportunidade de aprofundar os estudos sobre o tema. No doutorado, segui com a pesquisa a fim de poder contribuir com o debate científico, analisando a Lei do Superendividamento e apontando caminhos para a resolução do problema dos consumidores superendividados no Brasil.
Entrevista Nota 10 — Aprovada em 2021, a Lei do Superendividamento (Lei nº 14.181) representa uma vitória histórica para os consumidores brasileiros. Como esta norma impactou na proteção dos consumidores e quais foram as mudanças mais significativas?
Lara Vieira — Esta lei alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), de natureza protetiva, introduzindo dispositivos específicos para prevenção e tratamento do problema, relativamente recente no Brasil.
Como medidas preventivas, podemos destacar a instituição dos princípios do crédito responsável, que se traduz na obrigação do fornecedor de avaliar adequadamente a situação financeira do consumidor e sua efetiva capacidade de pagamento da dívida quando da concessão do crédito, e da educação financeira dos consumidores. Igualmente importante foram a ampliação das informações a serem prestadas ao consumidor quando da contratação do crédito e a imposição de restrições na abordagem da oferta de crédito ao consumidor, seja ela publicitária ou não, passando a proibir mensagens que, de algum modo, possam omitir ou dificultar seu entendimento sobre os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo.
Já em relação às medidas de tratamento, a mudança mais significativa foi a introdução no nosso ordenamento jurídico da ação de repactuação de dívidas, com o objetivo de realização de audiência de conciliação entre o consumidor superendividado e todos os seus credores para negociação de um plano de pagamento, com prazo máximo de cinco anos, preservado seu mínimo existencial. Caso a negociação não seja exitosa, o consumidor superendividado ainda poderá propor a ação de superendividamento, com determinação compulsória do plano de pagamento pelo juiz.
Entrevista Nota 10 — Mesmo com a existência da Lei de Superendividamento, o número de brasileiros endividados e inadimplentes continua crescendo, chegando a 78,5% dos consumidores, de acordo com dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic). Quais são as causas para o aumento progressivo desse número?
Lara Vieira — O problema do superendividamento é bastante complexo, mas podemos apontar como principais causas para o seu surgimento e crescente evolução a publicidade excessiva, a concessão fácil e irresponsável do crédito, com altas taxas de juros, e a falta de informação e educação para o consumo. A nova lei estabelece medidas importantes para prevenção e tratamento do problema, mas seus efeitos, além de limitados, não são imediatos, pois implicam em mudança na cultura do endividamento, já tão arraigada no nosso mercado.
Importante registrar que o acesso ao crédito para o consumo é, em princípio, bom para os consumidores e para a economia. O problema está no abuso da concessão do crédito, como ocorre com os empréstimos consignados aos aposentados, frequentemente vítimas de assédio de bancos e instituições financeiras. Certas facilidades, como parcelamento "sem juros" no cartão de crédito e pagamento do mínimo da fatura, têm um custo bastante elevado para os consumidores, não somente pelo preço pago a título de juros, muitas vezes exorbitantes, mas pelo ciclo vicioso ao qual o consumidor fica permanentemente vinculado.
Entrevista Nota 10 — O superendividamento não é, como apontado em sua obra, um problema individual, mas sim social e coletivo. De que formas ele pode ser combatido?
Lara Vieira — O superendividamento pode ser combatido por meio de medidas preventivas e de tratamento do problema. Entendo que a Lei do Superendividamento estabelece medidas preventivas bastante interessantes, entretanto, as destinadas ao seu tratamento são insuficientes para efetiva resolução do problema. Primeiro porque a Lei excluiu da sua abrangência não somente as dívidas não resultantes de relações jurídicas de consumo, como as dívidas tributárias, cíveis e trabalhistas, mas também as dívidas de consumo provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
Sendo assim, não são passíveis de negociação no plano de pagamento dívidas contraídas com o fisco, como Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), com o condomínio, com empregados domésticos, a título de pensão alimentícia ou decorrentes da aquisição de bem imóvel ou móvel, como apartamento ou carro, se contratados por meio de hipoteca ou de alienação fiduciária, respectivamente.
As exceções são tantas que não permitem a verificação, e consequente resolução, do problema do consumidor superendividado na sua integralidade. A Lei também não prevê a possibilidade de perdão total ou parcial da dívida para quem, comprovadamente, não tem condição de pagá-las no prazo máximo de cinco anos do plano, como ocorre em procedimentos falimentares para pessoas físicas de outros países, como Estados Unidos e França.
Ademais, como a Lei não regulamentou o mínimo existencial a ser preservado para garantia da sobrevivência digna do consumidor enquanto cumpre com o plano de pagamento, este acabou sendo fixado arbitrariamente, por meio de decreto presidencial, inicialmente em 25% e depois em 50% do valor do salário mínimo. Isso significa que toda a renda do consumidor, com exceção desta reserva de meio salário mínimo, será destinada ao pagamento das dívidas, o que, certamente, só favorece os interesses dos fornecedores.
Diante deste cenário, considero importante que mais instituições e instrumentos de proteção ao consumidor superendividado sejam criadas e difundidas, entretanto, entendo que, atualmente, o maior entrave para resolução efetiva do problema está nas limitações da própria lei e na determinação, por decreto presidencial, de um mínimo existencial prefixado, no valor irrisório correspondente a meio salário mínimo.
Entrevista Nota 10 — Há dois anos, a Universidade de Fortaleza, em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Ceará e o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, inaugurou o Núcleo de Superendividamento em seu campus, vinculado ao Escritório de Práticas Jurídicas (EPJ). Como o núcleo contribui para oferecer assistência jurídica e apoio a consumidores superendividados na região?
Lara Vieira — O Núcleo de Superendividamento foi pioneiro no Norte e Nordeste na realização de audiências de conciliação entre consumidores superendividados e seus respectivos credores para negociação do plano de pagamento, no âmbito do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC/Unifor), situado no bloco Z da Universidade e mantido pela Fundação Edson Queiroz.
Os consumidores superendividados são encaminhados pela Defensoria Pública Estadual, após realização de triagem, elaboração da planilha de cálculos das dívidas e proposta de plano de pagamento. Eles são acolhidos pelo núcleo, que conta com uma equipe multidisciplinar bastante qualificada. Além de orientação jurídica e apoio, inclusive psicológico, aos consumidores superendividados, o Núcleo de Superendividamento da Unifor efetivamente já realizou 40 atendimentos especializados e 22 sessões de conciliação para negociação do plano de pagamento, mesmo com todos os entraves legais e práticos já apontados.
Entrevista Nota 10 — Além do Núcleo de Superendividamento, o curso de Direito da Unifor possui diversas outras iniciativas voltadas para o atendimento à comunidade, como o próprio EPJ e parcerias com instâncias jurídicas. De quais maneiras elas impactam na formação de profissionais do Direito mais humanos e atualizados com o mercado?
Lara Vieira — Essas experiências impactam significativamente na formação cidadã dos nossos alunos do curso de Direito, pois possibilitam a compreensão da realidade social e aplicação dos conhecimentos jurídicos adquiridos para resolução dos problemas apresentados, a cada dia mais complexos e desafiadores.