Entrevista Nota 10: Lucicleide Belo, a desembargadora que faz história no Tribunal de Justiça do Piauí

seg, 9 setembro 2024 19:02

Entrevista Nota 10: Lucicleide Belo, a desembargadora que faz história no Tribunal de Justiça do Piauí

Juíza fala sobre a conquista do novo cargo como desembargadora do TJ-PI e compartilha sua trajetória profissional, além de abordar a relação com a Universidade de Fortaleza


Egressa do Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos da Unifor, Lucicleide é professora do Ejud-PI e formadora da Enfam (Foto: Arquivo pessoal)
Egressa do Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos da Unifor, Lucicleide é professora do Ejud-PI e formadora da Enfam (Foto: Arquivo pessoal)

A presença feminina na área jurídica tem ganhado, por mérito e competência próprias, cada vez mais espaço ao longo dos anos, principalmente com o reforço de incentivos legais na promoção da igualdade de gênero. Um exemplo disso é a juíza Lucicleide Pereira Belo, que foi eleita desembargadora do Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) e se tornou a quarta mulher a ocupar essa vaga em 133 anos de história da Corte estadual.

Com mais de 30 anos de experiência na magistratura, ela é a primeira a tomar posse em um cargo destinado exclusivamente para mulheres — uma resolução Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a promoção da igualdade de gênero no sistema judiciário. 

Seu compromisso com a justiça e a agilidade processual também rendeu outro grande acontecimento jurídico no Piauí: a criação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania em matéria de Saúde (Cejusc Saúde), da qual ela foi uma das proponentes. A idealização dessa iniciativa surgiu da dissertação de Lucicleide para o Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos, na Universidade de Fortaleza.

Além do pioneirismo como desembargadora, ela já concorreu a várias premiações, como o Prêmio Innovare, na categoria Juiz, com o projeto “(A)gosto do Pai”, que foi incluído no Banco de Boas Práticas do Instituto Innovare, em 2020. Também teve o projeto “Sala da Criança”, de sua autoria, que entrou para o Banco de Boas Práticas do CNJ.

Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Lucicleide é pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Camillo Filho (ICF) e possui MBA em Gestão Judiciária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ela ainda atua como formadora na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), além de ser professora da Escola Judiciária do Piauí (Ejud-PI).

Na Entrevista Nota 10 desta semana, a juíza fala sobre a conquista do novo cargo como desembargadora do TJ-PI e compartilha sua trajetória profissional, além de abordar a relação com a Unifor.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Poderia contar como surgiu o interesse em seguir uma carreira no Direito? O que te fez decidir pela área jurídica onde atua hoje?

Lucicleide Belo — Aos 18 anos, quando prestei o vestibular para Direito na Universidade Federal do Piauí, decidi seguir o curso pelos conhecimentos [adquiridos] do cotidiano, as conversas entre os colegas de aula e o sonho por um mundo justo, como contado nos filmes da época.

Entrevista Nota 10 — Você se tornou desembargadora da Corte de Justiça Piauiense, sendo a primeira mulher a tomar posse em uma vaga exclusiva feminina e a quarta a ocupar o cargo em 133 anos de história do TJ-PI. O que essa conquista fala sobre sua carreira? E de que forma ela traz uma nova luz sobre a questão da igualdade de gênero dentro de instituições jurídicas no Piauí?

Lucicleide Belo — Em agosto deste ano, eu ascendi ao cargo de desembargadora pelo critério de merecimento, em uma vaga exclusivamente feminina, fato histórico no Poder Judiciário piauiense. Isso foi possível após a aprovação da Resolução Nº 525/2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um marco importante na promoção da igualdade de gênero no sistema judiciário. A Resolução determina que, ao preencher vagas por merecimento nos Tribunais de Justiça, a composição deve observar a paridade de gênero. Assim, o Presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Hilo de Almeida e Sousa, acolhendo este ato normativo, lançou o edital para preenchimento do cargo de desembargadora por merecimento.

Minha ascensão ao cargo de desembargadora trouxe muita representatividade, inspirando mulheres não só no judiciário, mas em diversas áreas de atuação profissional, mostrando-lhes que é possível conquistar espaços tidos anteriormente como masculinos.

Dessa forma, entendo que eu represento não apenas minha trajetória pessoal, mas também a luta contínua pela igualdade entre homens e mulheres. A paridade de gênero é essencial para construir uma sociedade justa e equitativa, garantindo oportunidades iguais e vozes representativas para todos.

Desde que ingressei na Magistratura deste Estado, passei a cultivar o ideal de um Poder Judiciário mais democrático, sensível às reivindicações das juízas e juízes de Primeiro Grau e que valorize mais a capacidade técnica, a independência, o esforço e a dedicação dos seus membros ao estudo da ciência do Direito. Por este ideal, trabalhei todos estes anos.

Entrevista Nota 10 — Uma de suas atuações também é como formadora na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), além de ser professora da Escola Judiciária do Piauí (Ejud-PI). Na sua visão, o que é necessário para um jurista se destacar no âmbito do direito, independentemente do cargo? Que diferenciais servem como destaque para esse profissional?

Lucicleide Belo — Atuar como formadora da Enfam e professora na Ejud-PI muito me orgulha, especialmente por me fazer instrumento para disseminar conhecimentos e incentivar a pesquisa entre os estudantes de direito. Para se destacar no âmbito do direito, penso que um jurista deve sempre investir em qualificação e atualização profissional, além de trabalhar com ética, criatividade e comprometimento.

Entrevista Nota 10 — Sua pós-graduação foi realizada aqui na Unifor, no Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos, concluído com o trabalho “CEJUSC SAÚDE no Piauí: uma possibilidade de resolução adequada dos conflitos da saúde e um caminho diverso à judicialização”. De onde surgiu a ideia para sua dissertação? E como ela desembocou na criação desse novo Cejusc?

Lucicleide Belo — A ideia surgiu da vivência com judicialização da saúde na minha unidade, nos processos que versam sobre saúde suplementar, em conjunto com os estudos sobre a mediação no Brasil.

É certo que para dar efetividade aos direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário tem sido provocado pela sociedade a se manifestar diuturnamente, em forma de ações judiciais, o que impacta no congestionamento do judiciário. Por outro lado, pesquisas voltadas ao diagnóstico do processo de judicialização da saúde no Brasil apontam que a atuação do Judiciário de forma individualizada produz efeitos nas políticas e nos orçamentos públicos.

Assim, com base nesse cenário, é necessário criar alternativas viáveis para o tratamento adequado aos conflitos relacionados a questões sanitárias. Daí nasceu o Cejusc Saúde, como forma de tratamento aos conflitos decorrentes do direito à saúde. Como costumo dizer, um diálogo entre a Constituição Federal de 1988 e a Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça.

Entrevista Nota 10 — Qual a importância do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania em matéria de Saúde (Cejusc Saúde) para a população e para o TJ-PI? O que esse projeto significa para você enquanto profissional e cidadã, especialmente por ter sido uma das proponentes?

Lucicleide Belo — A Resolução nº 125/2010 do CNJ estabelece inúmeras inovações no que se refere aos métodos autocompositivos já materializados nos procedimentos processuais cíveis, como também propõe uma verdadeira mudança de paradigma quanto à aplicabilidade destes no atual cenário jurídico brasileiro. 

Mesmo com as inovações fomentadas pelos referidos institutos, o Estado tem sofrido as consequências da judicialização crescente da saúde, resultando, sobretudo, em disputas estruturais por recursos e comprometendo orçamento público de assistência à saúde. Isso ocorre em razão de inúmeras dificuldades para efetivar o direito à saúde, como, por exemplo, precariedade da atenção à saúde básica; ineficácia na organização estrutural da logística da assistência farmacêutica; divisão inadequada dos profissionais da saúde por regiões e redução orçamentária para as crescentes demandas.

Essa realidade imposta ao país, em razão dos fatores aqui expostos, acentua-se de forma bastante potencializada na região Nordeste, haja vista suas peculiaridades sociais, econômicas e políticas.

É, portanto, em razão da complexidade desse contexto que a análise da judicialização das demandas da saúde torna-se relevante. [Essa avaliação] fortalece a ideia de discutir novos métodos para solucionar tais demandas, principalmente acerca do impacto que esse fenômeno tem gerado para o Estado e para o judiciário, o que justificou a necessidade de criação de um Cejusc-Saúde no Estado do Piauí, como unidade potencializadora da pacificação social, conforme recomendação do CNJ. 

O Centro constitui um espaço dialógico transdisciplinar, de envergadura conciliativa, cuja aptidão é a convergência das diretrizes da governança colaborativa. Tem como base os modernos institutos do Tribunal Multiportas, considerando, sobretudo, a multipolaridade de atores envolvidos, bem como as peculiaridades das características públicas e estratégicas do conflito de saúde, reduzindo, por sua vez, o ajuizamento de demandas judiciais.

Para mim, é gratificante testemunhar o avanço do Poder Judiciário no tratamento adequado de demandas que são de extrema relevância como as de saúde, privilegiando o atendimento satisfatório e célere destas lides. 

Entrevista Nota 10 — Toda sua atuação e formação profissional ocorreram no Piauí. O que te fez escolher a Universidade de Fortaleza, uma instituição em outro estado, para realizar seu mestrado? Qual o papel e a relevância da Unifor em sua trajetória?

Lucicleide Belo — Escolher realizar um mestrado em uma instituição fora do estado onde resido e desempenho minhas funções institucionais foi um desafio que resolvi enfrentar, pois a Universidade de Fortaleza é uma instituição reconhecida por sua qualidade acadêmica e infraestrutura. A Unifor oferece programas de pós-graduação de alta qualidade, com corpo docente experiente e atualizado. E a reputação da Universidade nessa área de estudo [Direito] foi um fator decisivo em minha busca por uma formação que complementasse e ampliasse meu conhecimento.

A Unifor teve um papel crucial em minha trajetória profissional e acadêmica, dada sua excelência acadêmica. [A Universidade] me proporcionou uma diversidade de perspectivas e participação em projetos e iniciativas que em muito engrandeceram minha pesquisa e minha atuação profissional no Tribunal de Justiça do Piauí.