seg, 10 dezembro 2018 18:22
Entrevista Nota 10: Professora Christina Praça e o poder da voz
Afinadíssimas, a saúde vocal e as tecnologias da informação e comunicação (TICs) soam como música para os ouvidos da fonoaudióloga, professora e pesquisadora Christina César Praça Brasil. É assim desde o início da sua graduação no curso de Fonoaudiologia da Unifor, ainda na década de 1990, quando já ensinava inglês no Ibeu. Lá, percebeu precocemente como o professor precisava da voz e, muitas vezes, não tinha preparo para cuidar desse instrumento de trabalho tão importante. E foi assim que conseguiu desenvolver e instalar no Ibeu o primeiro curso de promoção de saúde vocal para os professores da instituição.
A voz no contexto profissional passou então a ter centralidade em suas pesquisas – e os professores lugar cativo em cada avanço profissional e científico. Com especialização em Linguagem pela Unifor, Mestrado em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp e Doutorado em Saúde Coletiva pela associação ampla Uece/UFC/Unifor, a professora e pesquisadora hoje atua como chefe de gabinete na Reitoria da Unifor, mas sem abandonar a docência e a pesquisa, uma vez que é professora referencial no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva.
Ela foi coordenadora por quase nove anos do curso de Graduação em Fonoaudiologia da instituição, contribuindo com a formação na área e atuando na promoção da saúde vocal e terapia da voz e no tratamento de pacientes com sequelas dos tratamentos do câncer de cabeça e pescoço.
Desenvolve pesquisas que versam sobre inovação e comunicação na promoção da saúde, incluindo, o desenvolvimento de aplicativos, softwares e outras tecnologias eHealth de auxílio para profissionais que utilizam a voz como instrumento de trabalho. Ademais, também tem desenvolvido estudos sobre políticas e práticas para a promoção da saúde vocal e saúde do trabalhador.
Em entrevista, Christina Praça dá detalhes sobre como a Fonoaudiologia encontrou seu lugar de reconhecimento na área da Saúde Coletiva e destaca projetos nascidos na universidade e já validados no Brasil e em Portugal, como o VoiceGuard, aplicativo resultante de um projeto multidisciplinar que vem beneficiando professores no autocuidado com a voz e que em abril de 2016 foi o único projeto da área de saúde contemplado pelo CGIU (Clinton Global Initiative University), encontro promovido pela Fundação Clinton para discutir iniciativas de benefício público.
UNIFOR: Professora, qual o lugar da Fonoaudiologia, ou seja, da saúde da voz, no vasto campo da saúde coletiva? E como essa relação se dá na esfera da docência na Unifor?
Christina Praça: A Fonoaudiologia é a área que cuida da comunicação humana, estudando a voz, a fala, a linguagem, a audição e a motricidade orofacial, que inclui a deglutição e a respiração. Em Fortaleza, esse lugar foi conquistado passo a passo. Eu era professora na Disciplina de Estágio Supervisionado II em Fonoaudiologia, pela Unifor, atuando no Hospital Universitário Walter Cantídio e, depois, passei mais cinco anos como professora da mesma disciplina na Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza, tratando tanto pacientes com câncer de cabeça e pescoço como outros grupos com alterações vocais diversas. Atuei também como professora em outras disciplinas clínicas da Fonoaudiologia alocadas no NAMI/Unifor, onde também havia uma grande frequência de pacientes com alterações vocais. Dentre esses pacientes, havia um público de professores imenso. Aquilo me chamou atenção e pensei: isso é um caso de saúde pública. Foi quando veio a mudança curricular na época em que eu era coordenadora do curso de Fonoaudiologia da Unifor e resolvemos junto ao corpo docente ampliar a Saúde Coletiva na formação do alunos, isso foi por volta de 2003. Recebemos sempre muito apoio e incentivo da então diretora do Centro de Ciências da Saúde, a Profa. Fátima Veras, que hoje é a Reitora da Unifor. Ela, como médica e atuante na Saúde Pública, entendia muito essa necessidade. Começamos então, com um grupo de professores, a participar de todas as campanhas de saúde em Fortaleza. Campanha de vacinação de idosos, lá estava a gente falando sobre deglutição e fazendo avaliação auditiva. Em campanhas de vacinação e/ou saúde da criança, a gente fazia o teste da lingüinha, fazia avaliação auditiva, examinava crianças com atraso de linguagem, dificuldade de fala, dificuldade de deglutição ao nascer... Dia Mundial da Voz, que acontece sempre em abril... Ficávamos preocupados, pois não tínhamos muitas opções para encaminhar os que necessitavam de terapia, pois havia o NAMI e outros poucos serviços em Fortaleza para esse atendimento específico. Os postos de saúde ainda não contavam com fonoaudiólogos. Passamos a fazer reuniões com o pessoal das secretarias de educação e de saúde do estado e do município e, assim, o poder público começou a entender a importância do nosso trabalho, ao mesmo tempo, em que os conselhos regionais e federal de Fonoaudiologia batalhavam para que ações voltadas à saúde vocal e outras demandas fonoaudiológicas virassem política pública em âmbito nacional. Foi uma longa batalha, mas ainda não acabou...
UNIFOR: E como a Fonoaudiologia ampliou a sua inclusão em âmbito municipal e estadual?
Christina Praça: Os concursos para essa área eram muito escassos, quase inexistentes. Poucos serviços em Fortaleza e nos demais municípios do Estado do Ceará dispunham de fonoaudiólogos. Quando surgiram os Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) em Fortaleza, eu e alguns professores do curso de Fonoaudiologia da Unifor tomamos conhecimento e fomos conversar com os gestores responsáveis pela estruturação desses serviços para a inclusão de vagas para fonoaudiólogos no concurso que iria acontecer para os seis primeiros CEOs municipais. Conseguimos 12 vagas para fonoaudiólogos, sendo duas para cada CEO. Com vontade política, conseguimos contribuir para trazer o Conselho Regional de Fonoaudiologia – 8ª Região para Fortaleza, pois a regional mais próxima que havia era em Recife. Por meio da Associação dos Prefeitos do Ceará (Aprece) também sensibilizamos os prefeitos sobre as áreas de atuação da Fonoaudiologia e a carência desses profissionais nos respectivos municípios. Mostramos a eles como a Fonoaudiologia poderia contribuir para que a população adoecesse menos em relação aos distúrbios da comunicação e deglutição. Afinal, é melhor que as pessoas adoeçam menos e não precisem chegar ao hospital. Os investimentos na atenção primária devem ser priorizados, a fim de não onerar tanto o sistema de saúde. Fomos lá com a cara e a coragem, com slides debaixo do braço, e, assim, devagarinho, nosso trabalho passou a ser reconhecido e foram surgindo concursos em diversos municípios. Hoje é difícil um município que não tenha fonoaudiólogo. Porém, esse quadro de profissionais ainda precisa expandir muito para dar conta da demanda populacional. Assim, continuamos, por meio de pesquisas científicas, apoiando essas lutas, dando suporte às instituições públicas e privadas para promover o devido cuidado à saúde da população. Destaco que os Conselhos Federal e Regional de Fonoaudiologia, assim como o Sindfono e a Cooperativa dos Fonoaudiólogos do Estado do Ceará têm sido grandes parceiros nessa trajetória.
UNIFOR: De que formas essa luta política por reconhecimento profissional dialogou com sua atuação como professora e pesquisadora na Unifor?
Christina Praça: Nesse meio tempo fiz Mestrado em Distúrbios da Comunicação Humana em São Paulo, através de uma parceria da Unifor com a Unifesp/ Escola Paulista de Medicina, concluído em 2004. Já na minha dissertação criei um software, junto a um profissional da área de Tecnologia da Informação (TI), para que os professores das escolas públicas e privadas pudessem identificar crianças com características de distúrbio de leitura e escrita. Era um software para formação de professores. O impacto foi muito bom. Dez escolas de Fortaleza passaram a utilizar o software. Em 2011, veio o Doutorado, por meio de uma associação ampla entre a Uece, a UFC e a Unifor, agora, na área de Saúde Coletiva. Minha orientadora foi a professora Raimunda Magalhães da Silva, também da Unifor, e a gente trabalhou com a saúde vocal dos professores da rede municipal de ensino de Fortaleza. Ao todo, 351 professoras do ensino fundamental participaram dessa pesquisa, de 60 escolas municipais, ou seja, 10 escolas por distrito. A Secretaria Municipal de Educação, desde essa época, já se interessou muito pelo tema. E o Instituto de Previdência do Município (IPM) também entrou nessa interlocução. E veio o diagnóstico: havia – e ainda há - um contingente muito grande de professores que se afastam das suas atividades profissionais, especialmente da sala de aula, por problemas vocais, estes são remanejadas de função ou tiram licença de saúde. Isso porque você só cuida daquilo que você conhece, mas as professoras apresentavam um conhecimento muito limitado sobre os cuidados com a voz. As professoras achavam que ficar rouca era normal. Mas o normal mesmo seria cuidar desse instrumento de trabalho. E como cuido se não sei como? O que você sabe sobre sua voz? Como cuida no dia a dia? Foi assim que entendemos como a educação em saúde muda a conduta em relação à voz e à saúde em geral. Porque o problema de voz impacta em várias áreas, inclusive na saúde mental. Era comum ver nas professoras um quadro de estresse por conta da sobrecarga de trabalho, dos baixos salários, da violência psicológica sofrida em sala de aula, do ruído em sala de aula... Muita gente relata que perde a voz ou fica rouca nesse contexto. São as interferências das emoções na voz. E assim chegamos a três eixos que mais impactam a saúde dos professores (homens e mulheres) da rede de ensino: saúde vocal, saúde mental e saúde do movimento. Isto coincidiu com dados do IPM no contexto dos professores.
UNIFOR: E quais os desdobramentos da tese?
Christina Praça: Da minha tese de Doutorado, intitulada “A voz da professora não pode calar: sentidos, ações e interpretações no contexto da integralidade em Saúde” nasceram três desdobramentos, já a partir da devolutiva que dei às escolas e à Secretaria Municipal de Educação sobre os resultados da pesquisa, quais sejam: a criação do VoiceGuard, pois as professoras disseram que seria bom dispor de alguma tecnologia que ajudasse a cuidar da voz e da saúde; a criação de um curso em EaD para a formação de professores em saúde vocal (Saúde Vocal em Foco) e a implantação de uma disciplina de saúde vocal nos fluxogramas dos cursos de graduação em Letras e Pedagogia de duas Universidades públicas de Fortaleza. Todos os três desdobramentos transformaram-se em pesquisas executadas em parceria com minhas mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e bolsistas de iniciação científica, estando as duas primeiras concluídas – VoiceGuard e Saúde Vocal em Foco. O terceiro desdobramento encontra-se em fase de execução junto a uma mestranda que defenderá sua dissertação no final de 2019. A criação dos recursos tecnológicos em parceria com o Laboratório de Inovação Tecnológica do NATI e o NEAD, ambos da Unifor, justifica-se pelo fato das pessoas passarem em media 9h conectadas à internet e mais de 80 por cento delas possuírem um smartphone, utilizando aplicativos para diversos fins. Em 2016, já como professora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Unifor, uma das minhas três primeiras orientandas de mestrado, a fonoaudióloga Danielle Araújo, desenvolveu a ideia do VoiceGuard comigo e com a equipe coordenada pelo professor Eurico Vasconcelos, do Laboratório de Inovação Tecnológica do Núcleo de Aplicação em Tecnologia e Informação (NATI) e ali, por meio desta parceria que se fortaleceu e perdura até hoje, nasceu o VoiceGuard.
UNIFOR: Como funciona o Voice Guard e como vem sendo utilizado?
Christina Praça: O VoiceGuard emite alertas para lembrar você de beber água, alerta se o ruído do ambiente estiver acima do volume da sua voz, ajuda a fazer testes para verificar o funcionamento das suas pregas vocais, dá dicas do que fazer e não fazer com a voz e guarda o seu relatório diário de uso do aplicativo. É auto-instrutivo e auxilia as pessoas, principalmente, os profissionais da voz a fazerem a gestão da saúde vocal. Foram dois anos de concepção e desenvolvimento do aplicativo em conjunto com uma equipe multidisciplinar, que envolveu profissionais da saúde e da tecnologia. Fizemos testes de usabilidade com especialistas e professores (usuários) e, quando validado e aprovado na versão Android, desenvolvemos a versão iOS. Foi um sucesso! Em 2017, ao ingressar no pós-doutorado em Tecnologia em Saúde no CINTESIS - Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, ligado a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Portugal, em 2017, validamos o aplicativo em outro cenário, com professores portugueses. Hoje, o VoiceGuard já é público e qualquer pessoa pode baixar o aplicativo gratuitamente. Outro desdobramento, a partir do VoiceGuard, foi na área da formação docente. Com uma aluna da graduação e também bolsista de iniciação científica (PIBITI/CNPq 2016), hoje, mestranda em saúde coletiva na Unifor, Maxuellen Facundo, construímos um curso a distância para dar suporte ao VoiceGuard: o Saúde Vocal em Foco. Este é constituído de quatro módulos, é todo interativo, com interlocução, vídeos, depoimentos, tem o conteúdo em PDF para você baixar e estudar e, o último modulo é o tutorial do VoiceGuard. O curso, agora, está em fase de validação em escolas de ensino fundamental, em Fortaleza, Ceará, e em Recife, Pernambuco. Então, é isso: as pesquisas nascem na universidade mas pulam o muro para beneficiar a população. Porque só acredito em pesquisa com responsabilidade social junto. Não posso fazer uma pesquisa para guardar na gaveta em forma de livro ou tese porque só vai atender a mim.
UNIFOR: O que há de projetos futuros em fase de gestação? O que já pode ser anunciado para 2019?
Christina Praça: Há um terceiro desdobramento, junto a uma aluna do mestrado, Jéssica Reis, ainda na linha de formação do professor. Estamos desenvolvendo uma disciplina de graduação sobre saúde vocal, onde trabalhamos com os estudantes de Letras e Pedagogia da Uece e UFC. Em 2019, já teremos um módulo experimental. A proposta é que a disciplina proposta seja incluída nos fluxogramas desses cursos, para que os professores tenham essa formação antes de sair da faculdade. Pretendemos, ainda, que essa disciplina entre nos fluxogramas de outros cursos de graduação que tenham a licenciatura. Ainda temos muitos desafios pela frente, mas tudo isso me empolga muito, assim como empolga a equipe docente e discente da Unifor. Outra parceria fecunda é com a Secretaria Municipal de Educação (SME). Quando fui dar a devolutiva sobre minha tese e sobre o VoiceGuard, a Profa. Dalila Saldanha nos falou da ideia de montar a Academia do Professor, um projeto focando na qualidade de vida e no bem estar desses profissionais, atuando, principalmente, nos eixos da saúde vocal, saúde mental e saúde do movimento. Ela me convidou para pensar junto às equipes da SME e do IPM uma política para o profissional da educação. Aceitei o desafio com um grupo de professores da Unifor, das áreas de Fonoaudiologia, Educação Física, Psicologia, Saúde Coletiva e Tecnologia da Informação. E assim foi criado o Programa de Saúde Integral do Profissional de Educação do Município de Fortaleza (Prosipe). Ele vai se consolidar dentro da Academia do Professor, inaugurada em outubro de 2018 - um centro de referência onde o professor e outros profissionais disporão de ações voltadas a promoção e a educação em saúde. Tanto o VoiceGuard como o Saúde Vocal em Foco serão utilizados lá, dando suporte ao programa de promoção da saúde vocal elaborado para esse fim. A ideia é que os professores da Unifor levem alunos como estagiários, visto que este também será mais um lugar para conduzir estágios supervisionados, tendo como público-alvo o profissional da educação. Ou seja, de uma trajetória de vida, com muitas parcerias exitosas, e de uma tese se concretiza um sonho: colocar a fonoaudiologia no centro da saúde pública.
UNIFOR: Para isso, a interdisciplinaridade se mostrou fundamental?
Christina Praça: Sem dúvida. As áreas de tecnologia da informação, psicologia, educação física, enfermagem, nutrição, publicidade, saúde coletiva e outras são grandes parceiras. Sem elas a Fonoaudiologia não avança sozinha em termos de pesquisa. Tanto assim que na Saúde Coletiva meu grupo de pesquisa chama-se Comunicação e Inovação para a Promoção da Saúde. E aí não tratamos apenas da saúde vocal, embora seja o carro-chefe. Temos criado, por exemplo, tecnologias para captação de doadores de sangue, o aplicativo Doe Sangue, em parceria com o Hemoce; um aplicativo para acompanhamento da gestação, o GestAção; um trabalho com o portal da Prefeitura que a gente, junto à CITINOVA e o NATI, adaptou para o Dendê, o Dendê Participa; e um Facebook, que dá voz à comunidade para saber quais problemas interferem nas condições de saúde e, a partir disso, tentar resolver com eles. Foi assim que a gente ajudou a reativar também a fábrica de vassouras de garrafas pet na comunidade e ampliou as possibilidades do artesanato, isso tudo mediado pela tecnologia. No Dendê, tem uma associação de moradores e como a universidade sempre teve uma boa parceria com eles voltamos a fazer oficinas de capacitação lá, gerando emprego e renda, contribuindo, assim para melhorar as condições de vida e saúde. E isso impacta positivamente na saúde coletiva. Tem muito chão pela frente. E estamos cada vez mais empolgados. Não vamos parar, mas seguir sempre adiante, levando a ciência e a tecnologia como ferramentas que possibilitam a melhoria da vida das pessoas.