seg, 15 outubro 2018 15:17
Entrevista Nota 10: Rossman Cavalcante fala sobre Educação Física e gestão
Prática e conhecimento são “musculaturas existenciais” que o profissional de Educação Física Rossman Cavalcante nunca deixou de treinar, seja como gestor dos próprios negócios ou como professor universitário. Na Unifor, lecionou no curso de graduação em Educação Física por 15 anos, isso depois de se graduar na mesma universidade, ainda no início da década de 1990.
Especialista em Treinamento Esportivo pela Faculdade de Educação Física de Sorocaba (FEFISO/SP), Saúde do Idoso pela Universidade Estadual do Ceará (UECE/CE) e mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC/CE), trouxe toda a bagagem intelectual para a gestão da Personal Care, umas das academias pioneiras em atendimento personalizado no país e que encerrou suas atividades no início de 2018, quando mudou de endereço e se transformou na academia Green Zone, onde desafios cada vez mais instigantes vêm sendo enfrentados quando a ordem é unir saúde e preparo físico.
Fundador e treinador sênior do Clube de Corrida, assessoria esportiva de corrida de rua, trilha e montanha, além da Fit House, empresa responsável pelo planejamento e estruturação de academias de condomínios e hotéis, Rossman Cavalcante conta tudo o que aprendeu através de muito estudo e pesquisa sobre o que pode um corpo.
Como se deu seu interesse pela área da Educação Física?
ROSSMAN CAVALCANTE: Eu era militar, aos 14 anos de idade entrei para Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas e segui para Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), mas já contaminado pelo vírus da Educação Física. Na EsPCEx fui atleta de vôlei, mas como não tinha a estatura ideal, me esmerei na parte de condicionamento físico, gostei disso, busquei ler alguns livros (poucos na época), conversar bastante com treinadores e técnicos e comecei a pensar na possibilidade de cursar Educação Física, mas meus pais não tinham condições financeiras para pagar uma universidade, porém a possibilidade de entrar na vida civil através da Educação Física nunca me saiu da cabeça.
Bom, decidi ir pra AMAN em 1986 e lá novamente fui atleta, dessa vez na modalidade de salto com vara. Com o passar do tempo e já com a cabeça totalmente voltada para a Educação Física, decidi que não iria continuar, pois queria tentar o vestibular. Voltei pra Fortaleza, comecei a fazer cursinho e até pela sólida base do ensino de excelência das escolas militares que estudei, passei para Educação Física na Unifor. Entrei em 12 de janeiro de 1987, sabendo que a única possibilidade de fazer faculdade era trabalhando. Fui trabalhar no Centro de Fisioterapia de Fortaleza, como estagiário na sala de musculação, ao mesmo tempo em que me cadastrei para conseguir crédito educativo na Unifor. Fui aprovado e fiz a faculdade toda em três anos e meio, trabalhando paralelamente. Paguei meu curso inteiro com meu salário.
E que caminhos levam você a administrar formação acadêmica junto à prática profissional?
ROSSMAN CAVALCANTE: Terminada a graduação, já exercia o cargo de coordenador de uma grande academia, em Fortaleza. Daí, passei a trabalhar como preparador físico de atletas, incluindo a dupla de vôlei de praia: Franco e Roberto Lopes. Trabalhei com eles por quase oito anos, de 1990 a 1998. Esse período foi muito importante porque passei a lidar com esporte de alta complexidade e alto desempenho. Franco e Roberto Lopes constituíram a primeira dupla brasileira campeã mundial e a primeira a conseguir vaga para as Olimpíadas, justamente quando o vôlei de praia passou a ser um esporte olímpico em 1996 (Atlanta/EUA). Durante esse período de tempo, abri meu primeiro negócio em 1992, a CONSULTA (Consultoria Técnico Atlética), basicamente um serviço de avaliação física e prescrição de exercícios individualizados.
Em 1998, surgiu a oportunidade de ampliar os horizontes, quando eu e meu sócio, o fisioterapeuta Helder Montenegro, percebemos a lacuna no mercado, relacionada a pessoas que precisavam ser assistidas nos seus exercícios de forma mais próxima, porque tinham alguma condição restritiva de saúde, ou seja, obesos, cardiopatas, hipertensos, diabéticos, pessoas com algum tipo de lesão musculoesquelética. No mesmo ano, iniciei minha primeira pós-graduação e abrimos a Personal Care, uma academia com o olhar mais direcionado para promoção, prevenção e recuperação de saúde, mas que também atendia pessoas com foco em estética e performance, garantindo que cada profissional de Educação Física supervisionasse um número pequeno de alunos. Hoje esse modelo é comum, mas fomos os pioneiros no Nordeste. Provavelmente, um dos maiores diferenciais da Personal Care foi o investimento “pesado” na formação dos profissionais, através de um programa inovador de educação continuada que incluía temas divididos na área técnica, comportamental e administrativa. Em 2005, o espaço ficou pequeno e fomos para um maior na avenida Beira Mar, local onde permanecemos até o início de 2018.
Essa formação interna na sua academia está ligada a sua própria formação acadêmica?
ROSSMAN CAVALCANTE: Sim. Nesse ínterim, eu me torno professor da Unifor, ao mesmo tempo que que outras academias começaram a investir nesse mesmo modelo. Nossa busca pela qualidade foi premiada em 2012, quando conquistamos o certificado ISO 9001, sendo a primeira academia do Norte-Nordeste e uma das cinco do Brasil a conquistar esse selo de qualidade total. Bem, continuando a falar sobre carreira acadêmica, fiz minha primeira especialização em Treinamento Esportivo na FEFISO em Sorocaba (SP), em 1998. Lá tive a oportunidade de assistir aula com pesquisadores e autores que eu lia e admirava ainda em um mundo sem internet: Antônio Carlos Gomes, Paulo Roberto de Oliveira, Sérgio Gregório da Silva, Abdallah Achour Júnior, entre outros.
Em 2001 decidi fazer uma segunda especialização e me inscrevi no Curso de Saúde do Idoso, na Universidade Estadual do Ceará (UECE). O tema do envelhecimento sempre foi muito caro pra mim e meu trabalho de conclusão de curso foi orientado por um dos geriatras que mais admiro no país: Dr. João Macedo Coelho Filho. Interessante perceber que comecei lidando com atletas de nível olímpico e passei a lidar com pessoas que teriam um conjunto de sintomas relacionados ao envelhecimento, além da própria cascata de doenças que vêm com o passar dos anos. Considero isso um grande diferencial pra mim, pois passei a enxergar duas situações polarizadas da aptidão física.
E como fez desse conhecimento adquirido, prática em seus próprios negócios?
ROSSMAN CAVALCANTE: Estamos desde fevereiro de 2018 nesse novo endereço, que é menor, mais confortável e mais focado ainda nas questões relacionadas à segurança do exercício, inclusive esse é um dos motivos pelos quais mudamos o nome para Green Zone. Na academia, você vai ver pessoas com câncer treinando, cardiopatas treinando, idosos treinando e pessoas que simplesmente querem ficar bem. Isso porque aprendi que posso ter na mesma sala de treinamento um atleta olímpico e um senhor de 80 anos cheio de restrições de saúde. Eles vão usar eventualmente até os mesmos equipamentos, o que muda então? Métodos de treino, séries, repetições, cargas, enfim todas as variáveis de treinamento que permitem que essas duas pessoas tão extremas convivam no mesmo ambiente de treino.
Em 2003, conclui que precisava aprofundar meus conhecimentos na área de pesquisa em saúde e fui aprovado no mestrado em Saúde Pública da Universidade Federal do Ceará (UFC) com área de concentração em Epidemiologia. O mestrado foi fundamental para desenvolver uma visão mais crítica da saúde pública com todas as suas nuances, limitações e potencialidades. Fiz a minha pesquisa no Centro de Atenção ao Idoso, “apêndice” do Hospital Universitário, que tem o foco voltado aos idosos com problema de demência. Essa diversidade de públicos, com classes sociais e visões de mundo tão diferentes, foi muito importante pra mim, assim como a formação paralela como gestor.
Como você chega à Unifor e o que incorporou dessa experiência como docente?
ROSSMAN CAVALCANTE: Eu chego na Unifor em 1999-2000, não como professor, mas preparador físico da equipe de vôlei feminino. Pouco tempo depois, após uma palestra para o curso de Educação Física, o professor e então coordenador do curso, Américo Ximenes, me convidou para ser professor da disciplina de musculação da Unifor. Comecei a ministrar aulas, mas observei que a musculação era disciplina optativa e eu não entendia por que, já que o treinamento de força é a base de preparação para questões relacionadas à saúde, performance e estética. Incomodava-me também a formação do profissional de Educação Física ainda limitada para lidar com os grupos especiais, ou seja, pessoas com condições restritivas de saúde, mas não impeditivas para o treinamento físico. Tudo bem, o sujeito saía da universidade apto a montar um treino para pessoas supostamente em boas condições de saúde, mas e da sua avó quem é que cuida? A maioria dos egressos dos cursos de Educação Física da época não sabiam lidar com uma pessoa, por exemplo, que tivesse passado por uma cirurgia recente, ou estivesse com artrose, enfim condições que exigiam um saber mais específico. Vivi como gestor, a dificuldade de contratar professor com experiência nessas situações. Aí, conversando com o coordenador, consegui emplacar através de uma disciplina opcional chamada Ginástica Especial II, o treinamento adaptado na grade curricular do curso.
A ideia era ensinar o futuro profissional de Educação Física a avaliar, prescrever e supervisionar exercícios para quem tem alguma condição restritiva de saúde. Apesar desse importante passo, ainda me incomodava ser também ela uma disciplina optativa, enfim após muitas discussões, conseguimos tornar obrigatória e hoje a Ginástica Especial II evoluiu para duas disciplinas obrigatórias chamadas Aptidão Física e Saúde I e II. Tenho muito orgulho de ter contribuído e “forçado uma barra” para que tudo isso fosse possível. Permaneci no curso até 2017, quando ficou impossível conciliar tanto trabalho além da docência. Não posso negar que essa separação gerou muito sofrimento pessoal, aliviado em parte pelo carinho e reconhecimento dos ex-alunos, concretizado através da última avaliação institucional discente, em que minha média foi 10,0 entre 10 quesitos avaliados.
Qual o significado da docência na Educação Física. Que professor você foi e acha que a Educação Física precisa ter?
ROSSMAN CAVALCANTE: Durante fases difíceis da minha vida pessoal e profissional, ir dar aula na Unifor era a melhor hora do meu dia. Tenho uma imensa gratidão com essa universidade e sinto que cumpri minha missão, deixando minha colaboração com o curso de Educação Física. Para os meus alunos, sempre destaquei que o profissional egresso da Unifor e de qualquer outra instituição de ensino tem que aprender a tomar decisões fundamentadas na evidência científica, mas também na prática de mercado. Professor que trabalha com teorias sem aplicabilidade prática não “vinga” mais em um mercado competitivo como o de hoje. A Unifor me proporcionou muitas oportunidades, desde a graduação, quando tive inspiração para definir que rumos dar para minha carreira, depois como professor e funcionário, conheci e aprendi práticas de gestão que adotei em meus negócios. Tive ótimos coordenadores, exemplos de gestores e práticas, fiz cursos e assisti palestras pela universidade que contribuíram muito para meu desenvolvimento pessoal e profissional. Todos precisam acumular conhecimento de boa qualidade para criar base argumentativa sólida a fim de lidar com clientes que estão bem mais informados do que no passado.
Essa relação da atividade física com saúde que você sempre perseguiu em sua formação acadêmica vale então para todas as doenças ou agravos?
ROSSMAN CAVALCANTE: Hoje são pouquíssimas as doenças ou agravos de saúde em que o exercício representa uma contra-indicação absoluta. São muitas os casos em que o exercício faz parte do tratamento, desde que seja adaptado e adequadamente supervisionado. Aí é que está a diferença. Vamos pensar, por exemplo, em uma pessoa que tem HIV/Aids, que tem o sistema imunológico comprometido, perda de peso e massa muscular, indisposição física e algumas incapacidades funcionais no dia a dia; sabendo disso é possível por meio de exercícios regulares e com intensidade controlada, buscar benefícios que incluem uma melhor resposta do sistema imunológico, a melhora das funções de alguns órgãos afetados pela doença, a redução das incapacidades físicas e até melhora de alguns indicadores psicológicos.
E com acompanhamento médico em paralelo, imagino.
Sim, assumimos esses desafios sempre com algum acompanhamento médico. Se você der uma volta aqui na academia não é difícil encontrar idosos nonagenários, cadeirantes, jovens com certas síndromes que afetam coordenação e movimento dos membros inferiores e pessoas que ainda estão em pleno processo de recuperação de lesões musculoesqueléticas, todos treinando. Em minha opinião, isso somente surpreende porque a própria área da Saúde supervaloriza o problema, a incapacidade e o que não se pode fazer. Aqui pensamos e agimos de forma diferente, nosso foco incide sobre o que é possível fazer e quais as possibilidades de treinamento que vão produzir alguma melhora para saúde e qualidade de vida. Nosso modelo de avaliação física, sobretudo em casos de doenças mais graves, já busca identificar quais suas possibilidades e potencialidades que podem ser transformadas em exercícios personalizados, eficientes e seguros. Penso que esse é um dos nossos diferenciais.