qua, 20 maio 2020 17:53
Os desafios da educação pós-pandemia, segundo Cláudia Costin
Há cerca de cinco meses, em virtude do coronavírus, o mundo começou a se reconfigurar, incluindo a educação. Instituições de ensino de todos os níveis educacionais vivenciam os desafios do ensino a distância.
Há cerca de cinco meses, o mundo começou a se reconfigurar. A descoberta de um novo vírus circulando pelo planeta impôs mudanças imediatas para conter uma transmissão que ainda se alastra matando milhares de pessoas em centenas de países. Se a saúde e a economia foram profundamente afetadas, não foi diferente com a educação.
Segundo a professora Claudia Costin, fundadora e diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (Ceipe-FGV), hoje, 190 países estão com escolas fechadas e um 1,5 bilhão de crianças e adolescentes excluídas de escolas por conta da pandemia de Covid-19. Diante das incertezas de quando tudo voltará ao normal, instituições de ensino de todos os níveis educacionais iniciaram processo de ensino a distância que tem imposto desafios não só às próprias escolas e universidades, mas também aos profissionais de educação e as famílias.
Para Costin, a aprendizagem remota tem o aspecto positivo de acelerar o modelo híbrido de educação, que alia o uso da inteligência artificial à presença do professor em sala de aula, para ela, ainda insubstituível. Por outro lado, o modelo pode aumentar drasticamente o abismo educacional entre ricos e pobres. Mas, segundo a especialista, a educação não pode parar. “Se a gente não fizesse nada, os riscos de aumentar a desigualdade educacional seriam tremendos. Com a atuação dos gestores educacionais, nós temos grandes chances de diminuir um pouco o dano causado, mas a gente não pode ter ilusões”, alerta.
Com vasta atuação na elaboração de políticas públicas para o desenvolvimento educacional, Costin foi diretora global de educação do Banco Mundial, membro da Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ministra da Administração e Reforma do Estado, secretária de Cultura do Estado de São Paulo e secretária de Educação do Município do Rio de Janeiro. Em conversa ao Entrevista Nota 10, Claudia Costin falou sobre o papel das instituições de ensino, dos professores e dos pais nesse novo processo educacional imposto pelo novo coronavírus e fez um panorama das alternativas de sucesso em educação remota ao redor do mundo e no Brasil. Confira.
Do ponto de vista educacional, como a senhora avalia esse momento que estamos vivendo? Quais são as principais consequências que a Covid-19 trará para a educação de crianças e jovens e quais serão os desafios da educação para quando a pandemia passar?
Tudo o que acontece na sociedade impacta a educação. Quer dizer, se essa sociedade tá vivendo uma crise, como nós estamos vivendo agora, evidentemente que isso impacta na educação e, aqui, eu vou falar inicialmente da educação básica, educação infantil até o final do ensino médio. Eu fui diretora global de educação do Banco Mundial, acompanhei questões como a educação das meninas no Afeganistão. Quando o Talibã tomou o poder, alguma solução teve que ser construída para as meninas. Não foi perfeita, mas foi o que se conseguiu fazer. A situação da guerra da Síria, que pegou o problema das crianças refugiadas: como é que você vai assegurar o direito de aprendizagem dessas crianças? E isso também é verdade no momento de uma pandemia.
Nós estamos com 190 países com escolas fechadas e um bilhão e meio de crianças e adolescentes excluídas de escolas por decorrência dessa situação. Quando acontece uma coisa dessas, há um risco tremendo que a desigualdade social instalada agrave as desigualdades educacionais que já existem. Porque as crianças vão para casa e se essa família tiver uma escolaridade mais alta, for mais afluente, com condições de moradia melhor, livros em casa, acesso a um repertório cultural, a tendência é que as crianças de meio menos afluente vejam os seus déficits de aprendizagem se aprofundarem porque a gente perde, no processo educativo, a mediação com os professores.
Daí porque todos os países - eu estou participando de dois webnários por semana congregando os países mais diversos - criaram algum tipo de solução, não pra substituir a escola, mas, para mitigar o dano que está sendo causado ao processo educacional. E isso tem sido feito, atualmente, numa combinação de instrumentos. Então, como já avançou o Wifi pelo menos para alguns, uma parte da educação está sendo online. A outra parte está sendo por televisão porque a televisão chega em muito mais lares do que só a solução digital. Rádio está sendo muito usado também. Rádio chega em mais lares ainda e há cadernos com atividades, ou livros, guias de aprendizagem, roteiros de estudo para serem feitos em casa.
Então, existe essa combinação de instrumentos, em que, às vezes, são só atividades, outra vezes, são orientações para os pais de como agir com a criança em casa. Então, o que tem sido feito é usar o mesmo rádio que está sendo usado para outras atividades, ou até programas de televisão, com algumas orientações para os pais, frequentemente, de baixa escolaridade. E o Brasil não está sendo uma exceção. O Brasil até, comparativamente a outros países, está se organizando. Então, todos os estados construíram algum tipo de solução que combina o digital com o papel e televisão. Isso é o que está sendo muito forte no Brasil. Alguns deles em colaboração com os seus municípios, outros não, só para rede estadual, mas, muitos dos municípios estão adotando sozinhos as suas iniciativas. Agora, naturalmente, como você pode imaginar e já deve estar acompanhando: nada disso é perfeito porque ninguém estava organizado para uma hipótese desse tamanho e essa incerteza de quanto tempo isso tudo vai durar.
É uma situação nova pra todo mundo...
Sim, às vezes, eu vejo gente na imprensa dizendo: “Ah, mas será que eles se organizaram a tempo a educação?” Aí eu fico pensando: “Se nem a saúde conseguiu se organizar porque é um vírus novo!”. Nunca se viveu uma pandemia que afetasse tantos países ao mesmo tempo, então, ninguém estava organizado pra isso. O que nós estamos fazendo é aprendendo uns com os outros. E, no caso brasileiro, o estado do Amazonas e o município de Manaus estão sendo um caso muito interessante para ser acompanhado. Não do ponto de vista da doença, porque todos nós sabemos que Manaus está sofrendo muito com o problema, mas do ponto de vista da resposta educacional à Covid-19. No Amazonas, tem o problema das populações ribeirinhas, que começam a ter acesso, cada vez mais, ao ensino médio, mas não com densidade demográfica suficiente para se construir escolas como a gente conhece tradicionalmente, com quadra de esportes, com outros benefícios. O estado do Amazonas construiu há cerca de 10 anos um centro de mídias, em que os próprios professores da rede transmitem via televisão, via satélite, que irradiam para pequenas salas que congregam vinte alunos de ensino médio aqui, trinta ali, com um professor generalista organizando o espaço de aprendizagem para poder dar acesso. Eles começaram com isso pra poder dar acesso ao ensino médio para as populações ribeirinhas. E deu muito certo. Tanto que o Brookings Institution [instituto de pesquisa americano especializado em elaboração de políticas públicas] considerou uma das 14 melhores práticas educacionais do mundo para garantir aprendizagem em escala. Com base nessa experiência que o Amazonas viveu, ficou muito fácil, tanto pro estado quanto para a capital, de construir a sua solução de aprendizagem em casa.
E a adesão dos pais e dos alunos a esse tipo de ensino tem sido positiva?
Tem sido. Como eu disse antes, não é perfeito. Com certeza vai haver casos de alunos que, no retorno, não fizeram nada ou não participaram porque a família está vivendo um caos, em condições de moradia inadequadas e uma série de coisas. Como vai ter o caso de, eu imagino, a média que conseguiu acompanhar uma parte importante disso. Como a experiência é tão inédita, nós vamos saber disso só no retorno.
Então, todos os estados estão realizando uma avaliação diagnóstica para saber, no retorno, quais foram as perdas que tiveram em termos de aprendizagem e também quais foram as perdas individuais de cada aluno para poder organizar uma recuperação de aprendizagem adequada. Então, dizer que vai dar muito certo, a gente ainda não tem como afirmar. Agora, a gente pode dizer que está havendo um esforço imenso de um exército de professores. Eu chego a me comover. Vários me mandam atividades filmadas, gente a cavalo para chegar numa estrada mais difícil, para chegar nas escolas rurais, para entregar atividade para os alunos nas proximidades de escolas rurais. É um pouco como os profissionais da saúde que estão na linha de frente se esfalfando. A gente não sabe se vão conseguir salvar tantas vidas quanto eles gostariam. Nós da educação trabalhamos também com salvar vidas, mas, salvar vidas num outro sentido, a médio e longo prazo. Então, a gente não tem certeza se a gente vai ser efetivo em todas as situações. O que eu tenho certeza de dizer é que está sendo um esforço enorme.
Eu gostaria que a senhora me dissesse quais são os benefícios e os riscos desse modelo de ensino imposto pelo coronavírus.
Os riscos são muito grandes. Você pode aprofundar as desigualdades educacionais se a gente não fizer nada. As escolas particulares estão mandando tarefas em casa já há mais de um mês. Quer dizer, as escolas que atendem as elites. Então, não é só que as famílias são mais preparadas, mas também, tem havido continuidade no processo pedagógico, se beneficiando de diferentes mídias, mas tem acontecido sistematicamente. Nas escolas públicas é uma operação logística pra chegar a todos muito mais complexa. E são famílias de escolaridade mais baixa e com menos chance de poder organizar um ambiente de aprendizagem. É bem mais complexo e se a gente não fizesse nada, os riscos de aumentar a desigualdade educacional seriam tremendos.
Com a atuação dos gestores educacionais, nós temos grandes chances de diminuir um pouco o dano causado, mas a gente não pode ter ilusões, não é que isso dá uma resposta para todos os casos. Com criança e adolescente no pós-coronavírus, eu não consigo imaginar e nem defendo que se faça educação a distância e nem “homeschooling”. Para mim, fica muito claro que o papel do professor e de uma comunidade que aprende junto é fundamental. Ainda não inventaram nada melhor do que o professor para complementar a educação de casa e educar crianças e adolescentes. O que nós vamos ter no pós-coronavírus é, provavelmente, uma educação híbrida avançando muito mais. Então, essa é a consequência positiva que eu enxergo do que a gente teve que aprender nesse processo. O tempo que vai se seguir ao coronavírus é um tempo da chamada quarta revolução industrial, em que há uma automação acelerada, substituição de trabalho humano por inteligência artificial. E nesse contexto, vai ser muito importante formar crianças e jovens para resolução colaborativa de problemas com criatividade. Isso funciona melhor no processo de ensino de criança e adolescentes usando sala de aula com apoio de tecnologia ou não, mas eles interagindo, aprendendo a trabalhar em grupos, os próprios professores aprendendo a trabalhar em grupo e resolver colaborativamente problemas. Tem toda a questão das competências socioemocionais, as também chamadas competências do século XXI, que funcionam melhor quando você tem um adulto como modelo. Então, vai avançar o acesso ao ensino híbrido, isso vai ser positivo. E negativo é a questão de que as diferenças educacionais ou as desigualdades educacionais vão aumentar bastante.
Professora, a gente já vinha acompanhando um ritmo de transformação muito grande no mundo e agora, com a pandemia, virou tudo de cabeça pra baixo, transformou-se completamente. Como é que os educadores podem estar preparados pra lidar com essas inúmeras transformações?
A primeira atitude de um educador é sentir que ele é parte do processo e que, da mesma maneira que os alunos estão aprendendo, ele, professor, também está aprendendo. Nós temos que ter desenvolvimento profissional e nós vamos ter que nos atualizar e aprender o tempo todo. Então, aquele professor que já está com aquele plano de aula um pouco amarelado, provavelmente, sofreu uma chacoalhada nesse momento e teve que sair da sua zona de conforto, aprender a usar plataformas digitais, bolar programas de televisão, a ir nos grupos de WhatsApp de pais para dar orientações... Coisas que, certamente, o seu curso, a sua licenciatura ou curso de pedagogia não o preparou para fazer. Então, é olhar para isso, não como uma coisa terrível, mas como uma oportunidade de crescer mais ainda dentro da sua profissão.
E os pais? Qual é o papel dos pais nesse novo modelo educacional? Como como conciliar o home office com a aprendizagem remota dos filhos?
É uma boa pergunta. Os pais, primeiro, têm que ficar mais tranquilos porque eles não são professores e não vão ser transformados em professores nesse processo. Eles têm que educar seus filhos. Então, uma coisa é organizar espaço para aprendizagem remota do aluno, que um pai atento à educação do seu filho já organizava para tarefas escolares. Mais importante até do que isso é conversar com seus filhos. Quando a gente está em quarentena ou isolamento, é uma situação muito diferente do que a criança já viveu em outros momentos e, da mesma maneira que os adultos estão inseguros, as crianças também estão. Então, compartilhar os seus sentimentos em relação ao que está sendo vivido é muito importante para os pais. Explicar o que é o coronavírus, envolver as crianças até na definição das rotinas da casa. É uma boa oportunidade para os pais que não envolviam as crianças em pequenas tarefas domésticas ensinarem como fazer sua cama, ensinar a cozinhar, ensinar uma série de coisas que nos tornam autônomos.
A Maria Montessori dizia que a educação consiste em formar para autonomia, o Paulo Freire, também. É usar essa oportunidade para formar pra autonomia. A escola vai mandar uma série de tarefas, mas nós vamos viver uma chance única, se os pais atentarem pra isso, de fortalecer vínculos familiares e de formar para autonomia. Sobre os vínculos familiares, tem uma série de atividades que eu tenho escrito nas redes sociais, no Twitter e no Facebook: pegue os velhos álbuns de família e conte para a criança a história da família, de porque que aquela avó decidiu vir para o município onde você está. Porque os nossos antepassados foram trazidos como escravos, se a família é afrodescendente, o que significou. Ou, se a família viveu o holocausto, o que foi sair do país de origem? A avó e o avô, que se conheceram no Brasil, cada um vindo de um país diferente... Esse é o momento de contar para a criança para ela definir sua identidade, aprender a estar confortável com a sua identidade, entender sua inserção na sociedade brasileira. Então, são coisas que só a família consegue fazer e que fortalecem os vínculos familiares.
Nesse momento, qual deve ser a principal preocupação das instituições de ensino? O conteúdo formal, como a senhora falou, cognitivo, precisa ainda ser a grande preocupação das escolas?
Ficaria muito mais bonito eu dizer que não precisa, mas precisa, porque senão, a desigualdade educacional vai crescer muito. Quer dizer, as crianças estão há quase dois meses sem aulas. Isso vai trazer um prejuízo bastante grande se a gente não fizer nada. Então, a gente tem que olhar para o bem estar do aluno, mas temos que olhar, com certeza, para aquilo que ele deveria estar aprendendo. Se você pensar, por exemplo, nas crianças na fase de alfabetização, têm pesquisas que mostram que nas férias - que é uma etapa curta de um mês - as crianças de meios mais vulneráveis chegam a perder 30% do que aprenderam no processo. Então, nós temos que olhar para a combinação de três coisas: a saúde, o bem estar e a aprendizagem dos alunos. É desafiador, mas é fundamental que isso aconteça. E repito: isso é mitigação de danos, isso é diminuição do impacto. Quando eles voltarem, tem que fazer uma avaliação diagnóstica para identificar perdas e organizar um sistema competente de recuperação de aprendizagem.
E para o ensino superior, como a pandemia vai impactar?
Para o ensino superior tem uma série de comentários importantes. Em primeiro lugar, muitas instituições de ensino que, ou porque já usavam o ensino híbrido ou porque tinham outras facilidades, rapidamente migraram para o online, o que com adultos funciona adequadamente. Eu acho que o futuro da educação vai ser semipresencial. Para você, de fato, ter um ensino superior que inclua muito mais gente, você vai precisar do uso mais intensivo e, ao mesmo tempo, mais competente de aulas online. Por outro lado, dependendo de qual é a profissão para com a qual nós estamos trabalhando, não basta ter aulas online, você precisa criar comunidades entre os alunos para que eles possam, como eu disse antes ao falar da educação básica, trabalhar a resolução colaborativa de problemas e ter uma vivência da sua futura profissão. Você tem que combinar isso com aulas presenciais ou semipresenciais.
Então, por exemplo, se você forma para medicina, é fundamental você ter um hospital universitário de referência. Então, parte do aprendizado vai se dar dentro do hospital universitário. Da mesma maneira, um bom curso de educação pode ter uma série de conteúdos online, mas, ele também tem que ter uma parte prática que acontece dentro de uma escola, observando aula, aprendendo com professores mais experientes antes mesmo de concluir a formação.
No ensino superior há muito professor que não é incluído digital. E não basta gravar uma aula tradicional como se faz no modelo atual, achando que só filmar uma aula tradicional que vira uma aula digital. Quer dizer, você pode ter uma educação a distância usando recursos muito interessantes, como uma tutoria bem preparada no processo de educação a distância. Você pode ter atividades interessantes em que a interação é possível. Eu acho que o Brasil está caminhando nessa direção de uma maneira interessante.
A gente vê esse caminho sendo traçado com o ensino de qualidade?
É, você tem um risco nisso muito grande porque o EAD surgiu no ensino superior com o mecanismo de tornar o ensino mais eficiente. Mais eficiente quer dizer menos caro e sem olhar tanto para qualidade. Então, lógico que você pode avançar muito em direção a formas semipresenciais, mas se o teu pensamento maior é tornar mais barato, as chances de sucesso diminuem porque um EAD bem feito não é necessariamente mais barato. Ele só se torna mais eficiente se, com esse mesmo processo de ensino, eu atinjo mais gente, mas não porque eu precarizei a forma de produzir as aulas.