40 anos de teatro coletivo e criativo

seg, 1 abril 2024 20:00

40 anos de teatro coletivo e criativo

Criado em 1984, o Grupo Mirante de Teatro rompeu os muros da Universidade de Fortaleza para destacar-se na cena teatral brasileira


No Ceará, o Grupo desempenhou um papel fundamental na descoberta, formação de público e desenvolvimento de talentos no campo das artes cênicas (Foto: Ares Soares)
No Ceará, o Grupo desempenhou um papel fundamental na descoberta, formação de público e desenvolvimento de talentos no campo das artes cênicas (Foto: Ares Soares)

Era 1984. No campus da Universidade de Fortaleza, vinculada à Fundação Edson Queiroz, alunos da disciplina de Língua Portuguesa faziam pequenas encenações de textos clássicos. Ensaiavam em locais e horários tão aleatórios e extravagantes que eram vistos como loucos. Estimulados pela professora Francilda Costa, que decidiu levar o teatro para sala de aula como recurso didático e de avaliação, eles começaram uma história que seria tão longeva que, neste ano, chega a sua quarta década.

O Grupo Mirante de Teatro Unifor nasceu sem muita pretensão, mas movimentou docentes e discentes ávidos por disseminar a arte no meio universitário, com aquelas primeiras peças de “O Noviço” a trechos da trilogia machadiana. Começou voltado à sala de aula e aos eventos acadêmicos, mas, depois de um hiato que se encerrou nos anos 1990, ganhou regularidade nos ensaios e montagens de espetáculos ao longo das décadas para ultrapassar os muros da Universidade.

Viajou o país com gerações e gerações de atores, acumulando prêmios que o destacaram na cena nacional. Formou de atores a figurinistas e arte-educadores que agora seguem suas próprias trajetórias. Desempenhou um papel fundamental na descoberta, formação de público e desenvolvimento de talentos no campo das artes cênicas.

Ao longo desta história, o grupo nunca deixou de olhar para dentro de si e para suas origens. Imerso em um ambiente educacional, viu seus espetáculos e projetos artísticos transformarem olhares, especialmente de crianças e adolescentes em contato com a arte a partir de suas iniciativas.

Aos 40 anos, o grupo é, de fato, mirante: um lugar que descortina panoramas, seja com espetáculos cuidadosamente apresentados, com experimentação no teatro ou com projetos para disseminar a arte da dramaturgia.

“Temos muito a celebrar nesses 40 anos: criação, convivência,  constância, regularidade e inventividade, tudo que um grande grupo necessita para ser tão longevo, atuante e criativo”, diz Hertenha Glauce, atual diretora do Grupo Mirante de Teatro Unifor.

A história iniciada pela professora Francilda Costa seguiu-se sob o comando da professora Nazaré Fontenelle na direção do grupo. O Mirante tornou-se muito popular dentro do campus da Unifor e passou a ocupar teatros na cidade de Fortaleza, com temporadas de espetáculos.

Foi Nazaré que dirigiu “Aprendiz de Feiticeiro”, de Maria Clara Machado, a peça com a qual o Mirante rompeu as divisas cearenses para trazer do Festival Nacional de Teatro Universitário em Campo Grande (MS) os prêmios de Melhor Atriz para Aline Pereira e de Melhor Figurino para Ricardo Bessa.

O legado de formar artistas teatrais

Ricardo Bessa estudava Turismo na Unifor, quando recebeu o convite da professora Nazaré para integrar o grupo Mirante. Começou como ator no espetáculo “O Capeta de Caruaru” para depois atuar também como figurinista nas montagens, o que lhe rendeu prêmios em dois festivais.


Cartaz do espetáculo “As Anjas”, dirigido por Ricardo Bessa (Imagem: Arquivo pessoal)

Foi convidado para dirigir o espetáculo “As Anjas”, com o qual o grupo mais uma vez rompeu as divisas estaduais para trazer prêmios de Goiás e Minas Gerais. “Esse espetáculo também excursionou pelo Rio Grande do Norte e pelo interior do Ceará, tornando-se muito popular e marcando época ao apresentar-se em todos os teatros de Fortaleza durante três anos, recebendo 14 prêmios”, recorda Ricardo, que depois virou diretor do próprio Mirante.

“O grupo me proporcionou não só estudos de teatro, mas me lançou como figurinista e diretor, carreiras que até hoje abraço juntamente como dramaturgo”, diz ele, que hoje é doutor em Teatro e professor do curso de Design de Moda da Unifor. “Tudo começou no Mirante”, ele diz.

Ricardo rodou o país e acumulou prêmios ao longo da trajetória no grupo, mas conta que o principal legado que deixou para ele foi levá-lo a se profissionalizar com registro no sindicato dos artistas e no Ministério do Trabalho. “O legado é ter me tornado artista teatral de fato”, considera. Para ele, o Mirante rompe seus 40 anos celebrando a sua própria existência e continuidade de produção artística de qualidade.


“O Mirante é um grupo com produção contínua com apoio de uma das maiores universidade brasileiras e que tem produzido importantes espetáculos que têm marcado a cena cearense, além de lançar grandes talentos.”Ricardo Bessa, doutor em Teatro e ex-diretor do Mirante

A partir do espetáculo “As Anjas”, o grupo concretava sua credibilidade na cidade. Havia deixado de ser amador e, apoiado pela Unifor, cercava-se de profissionais importantes na cena teatral cearense. Mas Ricardo Bessa precisou partir para estudar fora, e uma nova etapa começaria no grupo.

Fortalecimento como um grupo de teatro

Hertenha Glauce decidiu fazer a seleção para dirigir o grupo que mudaria sua relação com o teatro. Sob seu comando, o Mirante apostou em espetáculos adultos e infantis e consolidou sua credibilidade. Instalou-se, definitivamente, no meio artístico cearense a partir de 2002 com montagens regulares e temporadas marcantes.

Sem deixar de lado eventos acadêmicos, o Mirante se fortalece como grupo de teatro. Já faz 23 anos que a diretora e o grupo caminham juntos na conquista da maturidade artística. Glauce atuava há apenas quatro anos, quando foi convidada para o elenco de “As Anjas”. 

“Desde então, mantemos essa linda história de amor”, conta. Poucos anos depois, ela impôs para si o desafio de dirigir o grupo e, consequentemente, os espetáculos. “O Mirante me fez diretora”, brada. No percurso, ela diz que sentiu autonomia e apoio da Unifor.

Hertenha lembra que após a temporada de “Era uma Vez Nós Dois”, o primeiro espetáculo dirigido por ela em 2002, o então chanceler Airton Queiroz acatou a demanda antiga de construir um teatro na Universidade. No antigo auditório do bloco T, nasceu o Teatro Celina Queiroz, inaugurado pelo Grupo Mirante com o espetáculo “Viúva, Porém Honesta”, de Nelson Rodrigues, em 2003.


Capa do “Caderno 3”, antiga seção cultural no jornal Diário do Nordeste, anunciando a estreia do Teatro Celina Queiroz em 2003 (Foto: Arquivo pessoal)

Mas os frutos do grupo não param por aí. Ao longo dos anos, o Mirante abraçou a responsabilidade de criar um pensamento educativo, trazendo discursos importantes para a reflexão, tanto de atores, alunos, como do público em geral.

Foi nesta perspectiva que surgiram os projetos que transformam olhares. Durante sete anos, o Tarde com Arte aproximou crianças, jovens e adultos do Espaço Cultural Unifor e suas exposições, com contação de histórias sobre artistas e obras.

“O olhar do público sobre as exposições, após assistirem ao nosso projeto, se transformava. Um novo olhar se instalava”, diz Glauce. Para 2024, está prestes a ser lançado o projeto Arte ConVida, que trará apresentações teatrais sobre as exposições presentes no Espaço Cultural, quinzenalmente, de forma gratuita, aos sábados.


“Poucos grupos são tão constantes e regulares como o Mirante. Temos uma produção contínua, com muita qualidade e investimento da Universidade, nos dando total condições de imaginar e transformar sonhos em realidade.”Hertenha Glauce, diretora do Grupo Mirante de Teatro Unifor 

É sobre fazer teatro em grupo

Ivan Lourinho é arte educador, ator e diretor. Também é um dos mais antigos integrantes do Mirante, o grupo que o ensinou a fazer teatro em grupo. Foi lá que sentiu na pele que teatro nunca foi nem será um ofício solitário.

Em 2002, ele tinha acabado de ser selecionado no curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Ceará (UFC). Lá, conheceu alguns integrantes do Mirante e foi convidado a começar a participar dos encontros do projeto, que já eram regulares.
 
No mesmo ano, conseguiu fazer parte do elenco do espetáculo “Era uma Vez Nós Dois”, que estreou no Teatro Dragão do Mar e permaneceu em cartaz em uma temporada de um mês. “Foi a minha estreia como ator no circuito comercial do teatro em Fortaleza”, conta.

No Mirante, Ivan passou a participar de quase todas as montagens. Paralelamente, finalizou uma graduação em Informática Educativa, fez especializações em Gestão Escolar e em Arte Educação e Cultura Popular.

“Sempre busquei cursos e oficinas, realizados aqui em Fortaleza, voltados à formação de atores. Fui convidado por outros grupos da capital para montagem de trabalhos pontuais e também em algumas companhias de dança, encenando o momento teatral em suas montagens”, conta.

Em 2010, fez alguns intercâmbios com grupos do interior do Estado e, em 2017, realizou um projeto de iniciação para novos atores no município de São Gonçalo do Amarante – que foi concluído com a criação da Companhia Municipal de Teatro da cidade.

“Fiquei de 2018 a 2020 como diretor dessa Cia de Teatro. Foi um momento muito produtivo e de muita aprendizagem, pois estava assumindo uma outra função: direção. Participamos de diversos festivais de esquetes de forma brilhante”, rememora. Ivan também criou o Coletivo Lagoinha de Teatro com dois atores residentes em São Gonçalo do Amarante e tornou-se diretor dele.


“Foi no Mirante que aprendi a fazer teatro em grupo: compartilhando e desenvolvendo projetos, nos ensaios, nos bastidores, nas temporadas e viagens.”Ivan Lourinho, arte educador, ator e diretor.

A minha vida artística passa totalmente pelo Grupo Mirante”, diz Ivan. Foram muitos os desafios abraçados desde a sua estreia em 2002, passando pelos primeiros musicais e primeiras peças infantis, pela montagem de espetáculo de rua.

Em 2016, ele lembra de quão desafiador foi montar um espetáculo adulto (Tarsila) ao mesmo tempo com um infantil (As Aventuras de Dom Quixote). As primeiras indicações e os prêmios acumulados como destaques no teatro complementam momentos marcantes que ele dividiu com o grupo ao longo desta história.

Visibilidade e formação para abrir portas

Solange Teixeira começou fazendo teatro por intuição. A noção dos princípios que regem esta arte e a técnica ela foi desenvolvendo anos depois, no Grupo Mirante. “Foi trabalhando lá que passei a ser vista no âmbito teatral da cidade e onde ganhei o prêmio de atriz revelação”, conta, relembrando o papel que fez no espetáculo “As Anjas”, que ela considera um dos mais emblemáticos da carreira.

Daquele início até os dias de hoje, Solange cresceu. Você provavelmente a conhece da série “Cine Holliúdy” (2019), da TV Globo, onde esteve por três temporadas. A atriz também acumula muitos prêmios de teatro Ceará afora. É uma história que passa pela do Mirante.


“O Mirante me proporcionou momentos que me marcaram bastante, como a primeira peça de rua que fiz, na qual fui protagonista: ‘O Caso de Catarina’. Com ela, aprendi a improvisar bastante, pois sempre acontecia algum imprevisto, já que era apresentada no meio da rua.”
Solange Teixeira, atriz e ex-integrante do Grupo Mirante

Solange conta que entrou no grupo graças a Kildary Pinho, um amigo que estudava na Unifor e atuava no Mirante. O Grupo buscava uma atriz para fazer uma personagem na peça “O Capeta de Caruaru” e, após um breve teste, ela foi aprovada.

“Quando entrei no grupo, quem dirigia era Nazaré Fontenelle. Ela construiu uma grande história no Mirante, fazendo ele se tornar um grupo respeitado no Estado. Ela o impulsionou a participar de festivais e eventos, fazendo dele conhecido e admirado”, relembra.

Ao longo de 40 anos de existência, Solange acredita que o Mirante pode se orgulhar do que conquistou e continua conquistando. “É um dos poucos grupos que se mantém em cartaz continuamente, que nunca perdeu a força”, destaca.


Solange (ao centro) em uma das apresentações de rua, quando fazia parte do Grupo Mirante de Teatro Unifor (Foto: Arquivo pessoal)

Um encontro de artistas-amigos com muita história para contar

Quando a atriz e dramaturga Annalies Borges chega na sala de ensaio do Mirante, sente como se estivesse em uma extensão da própria casa. O espaço tem um acolhimento criativo que lhe mostra, constantemente, que a arte teatro é feita na coletividade. Talvez seja por essa sensação que a integrante do Grupo o vê como um encontro de artistas-amigos que acumula muitas histórias para contar no teatro cearense ao longo de 40 anos.

Annalies chegou ao Mirante há cerca de 12 anos. Queria ser atriz naquele grupo que começava a montar peças infantis, mas acabou deixando aflorar a dramaturgia no projeto Tarde com Arte, em que escreveu as primeiras contações de histórias. “De lá para cá, tenho estado sempre atuando (e cantando também, o que me anima muito) e escrevendo, sendo dramaturga nos projetos do Grupo”, conta.

Depois de anos fazendo teatro infanto-juvenil, Annalies lembra com carinho do dia da estreia de “Tarsila”, no Teatro Celina Queiroz, como protagonista. “Foi muito emocionante. Era um projeto com tempo de início, meio e fim, mas que foi criando vida, se movendo por outros territórios (até em Sobral nos apresentamos) e que, desde 2016 até 2022, circulou em temporadas com o Grupo”, rememora. Como apagar da memória os rostos e espaços distintos que ela costuma observar do palco, seja no festival Jazz & Blues de Guaramiranga ou na Bienal do Livro em Fortaleza? 

Annalies diz que o Mirante lhe trouxe muitos momentos importantes na vida artística: as premiações, a oportunidade de protagonizar uma peça escrita por Maria Adelaide Amaral e de circular sendo Tarsila do Amaral pelo teatro cearense, a chance de aprimorar a escrita dramatúrgica voltada para o público infantil. 

A atriz conta que um dos elementos mais importantes nessa trajetória, no entanto, é estar em um grupo que pensa coletivamente, com respeito e amor em cada trabalho desenvolvido.


“A existência de um grupo de teatro que faz teatro de grupo, que pensa coletivamente e que ocupa um lugar de destaque no teatro local e nacional, é algo que deve ser aplaudido, celebrado, comemorado mesmo, pois não é fácil se manter um teatro de grupo com esse tempo de estrada e com tantos projetos lindos e exitosos.” Annalies Borges, atriz e dramaturga

Longevidade e resiliência de um grupo que expressa a arte e a cultura

Ao longo destes 40 anos, o Grupo Mirante de Teatro tem servido como uma importante ferramenta de extensão cultural na Unifor, permitindo que a instituição estenda sua influência cultural para além dos limites do campus. Por meio das produções do grupo, a Universidade consegue oferecer à comunidade uma forma de arte que é ao mesmo tempo acessível, criativa e reflexiva, cumprindo seu papel de instituição promotora de cultura.

E são muitas as conquistas a serem celebradas em tantos anos de atuação. “Este marco não apenas reflete a longevidade e resiliência do grupo num campo frequentemente marcado por desafios, mas também destaca sua importância no cenário cultural, artístico e social, bem como o pioneirismo da Universidade de Fortaleza no fomento de arte e cultura no estado do Ceará”, destaca Adriana Helena, Vice-Reitora de Extensão e Comunidade Universitária da Unifor.

Ela diz que, durante essas quatro décadas, o Grupo Mirante de Teatro serviu como um veículo vital para a expressão cultural, oferecendo ao público uma vasta gama de produções teatrais que exploram temas variados, desde as peças infantis, aos musicais, incluindo clássicos da literatura.


“O grupo desempenhou um papel fundamental na descoberta, formação de público e desenvolvimento de talentos no campo das artes cênicas e foi responsável por trazer inovações para o teatro, seja por meio da adoção de novas técnicas teatrais, seja pela experimentação com estilos e formatos distintos.”Adriana Helena, Vice-Reitora de Extensão e Comunidade Universitária da Unifor