Entrevista Nota 10: Arlândia Nobre e o uso racional de fármacos contra a automedicação

seg, 15 julho 2024 17:52

Entrevista Nota 10: Arlândia Nobre e o uso racional de fármacos contra a automedicação

Presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado do Ceará fala sobre os perigos da medicação sem o acompanhamento de um profissional da saúde, assim como a importância do farmacêutico na conscientização sobre o assunto


Doutora e mestre em Farmacologia, Arlândia é coordenadora do curso de Farmácia da Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)
Doutora e mestre em Farmacologia, Arlândia é coordenadora do curso de Farmácia da Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)

No Brasil, a taxa de pessoas que se automedicam é de 89%, segundo dados da Pesquisa de Automedicação, lançada em 2022 pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ). O estudo mostra ainda um aumento considerável desse volume desde 2014 (76%), ano em que a coleta de informações para o relatório começou.

Para Arlândia Nobre, presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado do Ceará (CRF-CE) e coordenadora do curso de Farmácia da Universidade de Fortaleza, a automedicação parece fazer parte da nossa cultura. Não é incomum, inclusive, receber indicações de remédios por amigos, familiares e até mesmo por auto indicação quando sentimos algum sintoma de enfermidade.
 
O fato de muitas medicações serem de fácil acesso e não precisarem de prescrição acaba fazendo as pessoas acreditarem que tais fármacos não trazem riscos à saúde. Isso não só é falso como também é perigoso. “Não é à toa que os principais casos de intoxicação no Ceará e no país são decorrentes do uso abusivo de medicamentos nessa prática corriqueira da automedicação”, explica a farmacêutica.

Mestre e doutora em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Arlândia é especialista em Indústria Farmacêutica pela UFC e em Gestão da Assistência Farmacêutica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UNISC/RS). A docente ainda é bacharel em Direito e possui especialização em Direito Processual Civil pela UNISC/RS.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela fala sobre os perigos da medicação sem o acompanhamento de um profissional da saúde, assim como a importância do farmacêutico na conscientização e educação das pessoas sobre o assunto.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — No Brasil, a taxa de pessoas que se automedicam é de 89%. Os dados são da Pesquisa de Automedicação, lançada em 2022 pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ), que mostram ainda um aumento considerável dessa taxa desde 2014 (76%). Por que a automedicação é tão alta no país? O que faz as pessoas buscarem medicamentos sem a orientação de um profissional da saúde? 

Arlândia de Morais — A automedicação, de fato, é extremamente alta no nosso país, parece fazer parte da nossa cultura. Isso representa um grande risco porque os medicamentos são substâncias químicas que podem trazer efeitos extremamente indesejáveis. Essa prática recorrente de tomar medicação indicada por um amigo ou até mesmo indicada por si mesmo em um outro momento pode acarretar grandes problemas. O fato de eu ter uma prescrição no momento anterior e apresentar manifestações [sintomáticas] similares àquela não necessariamente quer dizer que se trata do mesmo problema de saúde.

Existem ainda os medicamentos que são isentos de prescrição e que são muito mais fáceis de serem acessados. Tem aquela ideia de que, por serem isentos de prescrição, seriam isentos de risco, o que, na verdade, não se confirma. Então, o que temos é uma prática extremamente perigosa e que tem trazido bastante malefícios. Não é à toa que os principais casos de intoxicação no Ceará e no país são decorrentes de intoxicações oriundas do uso abusivo de medicamentos nessa prática corriqueira da automedicação.

Entrevista Nota 10 — Com esse cenário alarmante de automedicação dos brasileiros, qual é o papel do farmacêutico na conscientização e educação da população? O que ele pode fazer no dia a dia junto às pessoas e demais profissionais da saúde?

Arlândia de Morais — O papel do farmacêutico é extremamente relevante dentro desse contexto da conscientização e da educação da população. Temos, inclusive, uma alteração na legislação (Lei nº 14.912), efetuada recentemente, que trata da obrigatoriedade da educação em saúde para evitar o uso irracional dos medicamentos. E eu sempre digo que o farmacêutico, por ser um profissional extremamente acessível, haja vista o grande número de farmácias e drogarias distribuídos pelo país, é um profissional de saúde que está disponível para tirar dúvidas, orientar, fazer o rastreio de doenças, inclusive prescrever alguns medicamentos para transtornos menores e encaminhar esse paciente para outros profissionais de saúde, considerando a complexidade do problema que ele venha a apresentar.

Com essa lei que foi recentemente alterada aqui no país, vemos a preocupação de fato com políticas públicas que busquem realizar campanhas permanentes de conscientização contra a automedicação, com o objetivo de informar a população sobre os riscos dessa prática, especialmente quanto a ingestão de antibióticos e de outros medicamentos sujeitos a controle especial.

Daí, mais uma vez, a relevância do profissional farmacêutico e a grande importância da acessibilidade a esse profissional, haja vista a sua distribuição em cada recanto do país. Acreditamos que o farmacêutico poderá, sim, contribuir bastante para o cumprimento da Lei nº 14.912, que determina a realização de campanhas permanentes sobre o risco da automedicação.

Entrevista Nota 10 — Além da atuação do profissional farmacêutico na conscientização das pessoas sobre os perigos da automedicação, você poderia falar sobre a necessidade de haver políticas públicas para termos uma mudança nesse cenário? 

Arlândia de Morais — Sem sombra de dúvidas, há a necessidade de implementação de políticas públicas para favorecer a mudança desse cenário. A automedicação vai de encontro ao uso racional de medicamentos. Então não há uso racional de medicamentos se esse medicamento não se dispõe a tratar, de fato, uma doença. Por isso que sempre consideramos a necessidade daquela terapia, da eficácia daquela terapia e a segurança dela. São problemas relacionados ao uso de medicamentos que, costumeiramente, o farmacêutico fica atento.

O medicamento só deve ser usado se realmente for necessário. Ele deve ser mantido na dose ideal, com posologia adequada, respeitando a duração de um tratamento se for realmente eficaz, se trouxer mais benefícios do que malefícios. E aí entra em cena também a questão da segurança: o medicamento não pode trazer mais problemas do que o que a própria doença já traz. E os medicamentos podem causar efeitos colaterais, muitos deles indesejáveis. Reações adversas, reações alérgicas, inclusive anafilaxia, choque anafilático. Então precisamos compreender que os medicamentos são seguros quando usados, de fato, diante de uma necessidade.

Entrevista Nota 10 — Em 2022, a dipirona foi o quarto princípio ativo mais vendido no Brasil, segundo dados do 6º Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico. Apesar de ser popular por aqui, o medicamento já foi proibido em mais de 30 países, como Estados Unidos, Japão e grande parte da União Europeia. Por que essa medicação não tem restrições no Brasil e é regulada em outras nações? Quais são os prós e contras do seu uso? 

Arlândia de Morais — A questão da restrição da dipirona tem muito a ver com a questão da pressão da própria indústria farmacêutica. Se nós observarmos onde a dipirona é proibida, essa proibição decorre porque há lá o paracetamol, que é um produto de origem daquele país. Então o que percebemos é que tanto a dipirona quanto o paracetamol têm efeitos terapêuticos importantes, mas também têm efeitos adversos relevantes.

Se nós olharmos para a dipirona — que pode causar, sim, de uma forma mais danosa o que nós chamamos de aplasia medular, comprometendo o funcionamento da medula óssea e a diferenciação de células que são importantes para a manutenção da homeostasia do nosso corpo —, não podemos deixar de lado que o paracetamol, mesmo em doses usuais seguindo a posologia, eventualmente pode causar uma hepatite fulminante, acarretando inclusive a necessidade de transplante hepático. Dessa forma, a hepatotoxicidade do paracetamol é muito mais concreta do que a aplasia medular decorrente do uso eventual da dipirona.

Chamo atenção de que existe uma pressão da indústria para reserva de mercado, de fato, para que os produtos oriundos de determinados países sejam por eles defendidos. Mas que as pessoas compreendam que como são substâncias químicas, todas elas sem nenhuma exceção, podem causar efeitos desagradáveis, indesejáveis e, eventualmente, potencialmente perigosos.

Com relação a dipirona, entendemos a extrema efetividade na regulação da temperatura. Em casos de febre, a dipirona consegue ter um efeito farmacológico bem mais expressivo do que o próprio paracetamol. Claro que existem pessoas que não podem usar nem um nem outro. São pessoas que possuem alergia ou algum tipo de condição pré-existente que limite a sua escolha. Por isso que os medicamentos devem ser usados devidamente orientados. 

Tanto o paracetamol quanto a dipirona são medicamentos isentos de prescrição, mas não isentos de risco. Por isso é importante que as pessoas busquem na farmácia o farmacêutico, que é o profissional de saúde capaz de orientar e direcionar a melhor conduta terapêutica diante de alguns transtornos menores.

[Ambos] são medicamentos isentos de prescrição, mas que devem ser orientados e até mesmo evidentemente e eventualmente prescritos pelo farmacêutico, se necessário. Não há necessidade de uma prescrição médica porque eles não são produtos tarjados, mas precisam de toda uma orientação para que sejam utilizados racionalmente.

Entrevista Nota 10 — Muitas pessoas precisam tomar mais de uma medicação de uso contínuo junto a outros fármacos ao mesmo tempo, seja por tratamentos de doenças crônicas, condições psiquiátricas ou enfermidades temporárias. É possível administrar tantas substâncias simultaneamente sem as interações medicamentosas afetarem negativamente a saúde ou bem-estar do paciente? Como isso ocorre? 

Arlândia de Morais — Quando o paciente precisa fazer uso da polifarmácia, que é a politerapia em função de comorbidades que ele apresente, é óbvio que o risco de interação medicamentosa se sobrepõe. Se usar um único medicamento já pode trazer efeitos indesejáveis, que dirá usando vários medicamentos ao mesmo tempo. Por isso é importante que se faça um plano farmacoterapêutico, que se observe se há alguma incompatibilidade entre as químicas, se há a necessidade de alteração de horário — alguns podem ser tomados concomitantemente, outros precisam respeitar um intervalo de uma medicação para outra.

Existem interações entre medicamentos com medicamentos, mas existem interações entre os medicamentos e os alimentos. O farmacêutico pode contribuir significativamente para elaborar esse plano terapêutico, favorecendo a adesão e minimizando os problemas relacionados aos medicamentos.  Particularmente os resultados negativos decorrentes dessa polifarmácia, dessa politerapia.

A nossa recomendação é que, ao precisar fazer uso de múltiplos medicamentos, que se procure um farmacêutico para chamar de seu e fazer com que siga um plano terapêutico adequado para evitar esses transtornos e essas interações potencialmente perigosas que eventualmente existem.

Entrevista Nota 10 — O curso de Farmácia da Universidade de Fortaleza possui uma longa tradição de excelência no ensino. Que diferenciais a Unifor oferece na capacitação desses novos profissionais? 

Arlândia de Morais — O curso de Farmácia da Unifor vai completar agora 26 anos de existência, e é um curso que se preocupa com a excelência dos profissionais que coloca no mercado. A nossa formação se ancora num tripé que as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) da farmácia estabelecem: o cuidado em saúde; a inovação e tecnologia e saúde; e a gestão em saúde.

É um curso que possui uma carga horária prática bastante significativa, onde o aluno consegue se inserir nessas vivências cotidianas já no primeiro semestre. E à medida em que realiza suas atividades acadêmicas envolvendo ensino, pesquisa e também a extensão — participando de ligas acadêmicas, de grupos de estudo, tanto do PET Saúde quanto do PET Farmácia, das atividades junto ao serviço e junto à comunidade —, acreditamos que isso contribua para que esse estudante adquira competências, habilidades e atitudes para que ele seja esse profissional de excelência que a sociedade tanto almeja. Um profissional capacitado, mas um profissional preparado para atuar em equipe, para resolver problemas de forma crítica e reflexiva visando a qualidade de vida da pessoa a qual ele realiza sua atividade.

E destaco que a profissão farmacêutica é uma profissão muito versátil na medida em que você tem várias áreas de atividade. Como farmacêutico generalista, o profissional poderá atuar em mais de 140 áreas diferentes, há versatilidade. E a matriz curricular extremamente integrada que possuímos favorece essa visão generalista que o profissional deve ter e que a sociedade tanto almeja.

Nós oferecemos inclusive, junto ao PET Farmácia e ao Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI), o Serviço de Informação de Medicamentos, que funciona por meio de um canal de WhatsApp e favorece as pessoas a tirarem dúvidas sobre o uso racional de medicamentos. Então a luta é diuturna para que as pessoas possam ter cada vez mais qualidade de vida, e se preciso usar medicamento, que use da forma mais segura.