seg, 7 outubro 2024 14:41
Entrevista Nota 10: Eduardo Dias e a consequência das apostas online para populações vulneráveis
Procurador federal da AGU fala sobre o panorama socioeconômico e jurídico dos jogos de aposta virtuais no Brasil, assim como as consequências desse fenômeno para pessoas em situações de vulnerabilidade
Segundo estudo realizado pelo Itaú, entre junho de 2023 e junho de 2024, os brasileiros perderam R$ 23,9 bilhões com apostas. Já um relatório do Santander mostrou que, desde 2018, o percentual de renda familiar gasto com bets passou de 0,8% para 1,9%. A taxa pode ainda chegar a 2,4%, de acordo com estimativas baseadas em dados do Banco Central.
Essa nova realidade vem progressivamente tomando conta do Brasil e transformando a vida da população – muitas vezes para pior. E os dados reforçam essa visão: cerca de 42% dos indivíduos que gastaram recursos com apostas esportivas ao longo de um mês estão endividados, aponta o Instituto DataSenado.
Para o pesquisador Eduardo Rocha Dias, procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) e docente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza, esse é um dos sintomas da falta de educação financeira adequada. O vício em apostas, diz ele, leva ao direcionamento de uma renda que deveria ser de consumo para o jogo.
“Mais uma vez, quem mais é prejudicado é quem mais é vulnerável: os mais pobres e de menor renda. É preciso reprimir as plataformas e os jogos que não cumprem com a legislação, evitar acesso de crianças e adolescentes, promover campanhas educativas e, a meu ver, restringir mais a publicidade dos jogos”, afirma. O professor acredita ser preciso verificar o que falhou na regulação e buscar corrigir esses erros.
Para entender melhor as nuances do tema, ele vem desenvolvendo o projeto de pesquisa “Apostas Esportivas e a Prevenção do Jogo Patológico: aperfeiçoamento da Lei 13.756/2018 e o uso de algoritmos para monitoramento de jogadores em risco”. O trabalho foi recentemente contemplado com um financiamento da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).
Bacharel e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Eduardo é doutor em Direito pela Universidade de Lisboa, tendo concluído estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ele ainda faz parte do Núcleo de Estudos sobre Direito do Trabalho e da Seguridade Social (NEDTS), da Unifor, e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Segurança Social, Trabalho Decente e Desenvolvimento.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, o jurista fala sobre o panorama socioeconômico e jurídico dos jogos de aposta virtuais no Brasil, assim como as consequências desse fenômeno para pessoas em situações de vulnerabilidade.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Desde que foram liberadas no Brasil em 2018, as apostas virtuais têm se expandido e passam hoje pelo processo de regulamentação, com aplicação prevista para janeiro de 2025. Qual a importância de definir uma legislação específica para essa atividade, tanto a nível jurídico quanto social?
Eduardo Dias — O jogo, e ainda mais o jogo online, produz danos ou externalidades negativas, atraindo a necessidade de uma adequada regulação estatal. Por um lado, o risco de gerar dependência nos usuários; por outro, o perigo de endividamento.
A regulação deve ainda contemplar o problema da integridade do jogo, ou seja, ele deve ser justo, não ensejando manipulações nem combinações de resultados. Também não pode ser usado para lavagem de dinheiro e para crimes, como tráfico de armas e outros.
As novas tecnologias e mudanças de hábito, com o crescimento do jogo online, ampliam o risco de dependência e endividamento, dada a maior disponibilidade – 24 horas por dia, sete dias por semana – de tal modalidade. Nos jogos físicos, há barreiras que instauram pontos de decisão, levando a pessoa a refletir. No jogo online, não há essas barreiras. Com um smartphone, o indivíduo pode jogar de casa, a qualquer hora. Isso torna necessária uma regulação específica e maiores controles.
No Brasil, o jogo, em regra, é uma contravenção penal, punida pelo art. 50 do Decreto-Lei 3.688/1941. Há loterias exploradas pela União e por Estados da Federação que são lícitas. Também as apostas em corridas de cavalos são permitidas. Há jogos proibidos, como o caso do jogo do bicho. Os bingos já foram liberados, mas depois proibidos. Há um projeto de lei no Congresso que libera o jogo em cassinos físicos, os bingos e o jogo do bicho. E em 2018, a Lei 13.756 permitiu as apostas de quota fixa, referentes a eventos reais de temática esportiva. Previa-se regulamentação em até dois anos, que não chegou a ser editada, resultando em um limbo normativo.
As empresas atuantes no Brasil observavam regulação de outros países, como Malta e Curaçau, e não se arrecadavam tributos, situação que começou a mudar em 2023, quando, primeiro por meio da Medida Provisória 1.182, que perderia sua vigência, e, posteriormente, pela Lei 14.790, se iniciou a regulamentação do setor. A Lei 14.790/2023 permitiu, além da exploração de jogos referentes a eventos reais de temática esportiva, os chamados eventos virtuais de jogos online. Considera-se jogo online, de acordo com o art. 2º, VIII, da Lei 14.790/2023, o “canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras”.
O órgão regulador é o Ministério da Fazenda, por meio da Secretaria de Prêmios e Apostas, que vem editando normas e regulamentando a Lei 14.790/2023.
Tivemos, porém, alguns problemas nessa regulamentação. Ela, a princípio, salvo algumas disposições antecipadas para outubro de 2024, entra em vigor em janeiro de 2025. Há empresas e grupos que cumprem a legislação atuando já no mercado de forma séria. E também há verdadeiras organizações criminosas que se aproveitaram da ausência de regras para oferecer jogos sem a menor segurança, enganando os apostadores.
O foco principal, no início da regulamentação, parece ter sido a arrecadação, tanto pela cobrança pelas licenças para operar, como de tributos. Era necessário, porém, reprimir quem engana os apostadores. E também investir em campanhas de conscientização e na prevenção do jogo patológico. O Ministério da Saúde e o SUS não foram ouvidos. Não se previu o tamanho que o problema iria tomar. E não se atuou mais firmemente nessa fase de transição. As empresas sérias devem requerer autorização para funcionar e cumprir as regras estabelecidas. As outras devem ser excluídas. E agora se está correndo atrás do prejuízo, como se costuma dizer.
Entrevista Nota 10 — Um relatório do Santander mostra que o percentual de renda familiar gasto com apostas, desde 2018, passou de 0,8% a 1,9%. Enquanto isso, o dinheiro reservado para compras de alimentos, roupas, móveis, eletrônicos, produtos de beleza e até medicamentos perderam espaço para o jogo. De que forma essa realidade afeta a qualidade de vida e a saúde da população brasileira? Como o mundo jurídico analisa esse problema socioeconômico que o país enfrenta hoje?
Eduardo Dias — Essa é uma das manifestações do problema que eu mencionei acima. O jogo deve ser visto como um entretenimento, em que se pode perder. E por isso não se pode apostar mais do que é possível. Falta uma adequada educação financeira, portanto. O vício em apostas leva a esse direcionamento de renda, que deveria ir para o consumo, para o jogo. Então é preciso verificar o que falhou na regulação e buscar corrigir essas falhas. Mais uma vez, quem mais é prejudicado é quem mais é vulnerável. Os mais pobres e de menor renda. É preciso reprimir as plataformas e os jogos que não cumprem com a legislação, evitar acesso de crianças e adolescentes, promover campanhas educativas e, a meu ver, restringir mais a publicidade dos jogos.
Veja o caso dos cigarros e das bebidas. Há restrições à publicidade de tais produtos, previstas na Lei 9.294/1996. A meu ver, não faz sentido restringir menos os jogos do que se restringe o tabaco e o álcool. Não pode haver nenhuma publicidade de cigarros, por exemplo. Empresas desse setor não podem patrocinar eventos esportivos. Já as empresas de jogos patrocinam clubes de futebol e fazem publicidade. Claro, a legislação prevê que se deve veicular advertências sobre os perigos do jogo, evitar divulgar o jogo como forma de obtenção de renda; mas, para mim, é preciso avançar mais.
Entrevista Nota 10 — Além da regulamentação operacional, existe também necessidade de trabalhar junto ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) no controle da publicidade de apostas online? De que maneira esse monitoramento pode ser realizado, inclusive no âmbito digital e nas divulgações feitas por influencers?
Eduardo Dias — A publicidade hoje é permitida com restrições. Não se pode divulgar para crianças e adolescentes, não se pode apresentar o jogo como alternativa ao trabalho como fonte de renda, se devem veicular advertências. Mas acho que se pode restringir mais a publicidade.
A legislação atual permite que pessoas, chamadas afiliadas, que podem ser influencers ou não, divulguem os jogos. Mas se sujeitam às mesmas restrições. E há responsabilidade solidária entre tais afiliados e as empresas por danos e violações que ocorram.
A autorregulação publicitária pelo Conar é um caminho, mas devemos avançar para a total proibição da publicidade. A Lei 9.294/1996, que regulamenta o art. 220, § 4º da Constituição, proíbe qualquer forma de publicidade do tabaco, salvo nos locais de venda (art. 3º), veda o patrocínio de atividade cultural ou esportiva (art. 3º-A) e, no tocante às bebidas alcoólicas, proíbe a veiculação de publicidade em trajes esportivos (art. 6º). A proibição total da publicidade e do patrocínio de eventos esportivos são algumas medidas que podem ser adotadas. Ainda que gradualmente.
Na Portaria SPA/MF 1.231/2024, uma das normas regulamentadoras, em seu art. 17, se proíbe apenas o patrocínio de equipes infantis e juvenis e de crianças e adolescentes. Poderia ser estabelecido um regime de transição, em especial no tocante ao patrocínio de eventos e entidades esportivas, pois se poderia manter os contratos atualmente em vigor, prevendo apenas que não seriam renovados ou prorrogados. No Reino Unido, os times integrantes da Premier League, a partir da temporada 2025-2026, não mais exibirão em seus uniformes os nomes das empresas de jogos daquele país. Decidiram isso voluntariamente. É um caminho que podemos trilhar.
Entrevista Nota 10 — Segundo o Banco Central, cerca de cinco milhões de usuários do Bolsa Família gastaram, só no mês de agosto, R$ 3 bilhões em bets via Pix. Já um levantamento do DataSenado mostra que 52% dos apostadores recebem até dois salários-mínimos por mês. O que esses e outros dados nos mostram sobre a necessidade de proteção social e econômica para pessoas vulneráveis? Que medidas podem ou devem ser tomadas?
Eduardo Dias — A partir dos dados sobre apostas feitas por beneficiários do Programa Bolsa Família, seria admissível vedar a sua participação em plataformas de jogos? Afinal, como se trata de benefício devido a pessoas em situação de pobreza e de extrema pobreza, o gasto com jogo não seria um desvirtuamento do programa, além de ter potencial de ampliar o endividamento de quem já é vulnerável? Ora, proibir é uma alternativa. O Governo anunciou proibir o uso do cartão do Bolsa Família como forma de pagamento, mas isso pode não impedir que a pessoa saque o dinheiro e aposte da mesma forma. Se proibir que os beneficiários, por meio de controle de CPF, possam apostar, eles podem retirar o dinheiro e pedir a um terceiro que aposte por eles. A proibição pode ainda ser considerada paternalista por violar a autonomia individual.
Com efeito, um dos pontos fortes do Bolsa Família é a transferência direta de dinheiro para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza e o respeito à autonomia da pessoa decidir com o que irá gastar. Pode-se, não obstante, pensar em outra alternativa: estabelecer um limite de gasto diário ou mensal. Ou um valor máximo que se poderia perder. No Reino Unido foi proposto o estabelecimento de um limite de gastos. Se o apostador chegar a esse limite, a plataforma deve entrar em contato, propor uma pausa no jogo e recomendar serviços de atendimento médico ou psicológico.
Da mesma forma, no caso de pessoas negativadas, seria o caso de proibir que jogassem? A Medida Provisória 1.182/2023, que perdeu eficácia, previa isso. Pode-se também pensar em limites menores para essas pessoas e em um monitoramento mais rigoroso por parte das plataformas de jogo.
Entrevista Nota 10 — O PL 3.718/2024 propôs uma limitação - e até proibição - de apostas realizadas por idosos, endividados e pessoas inscritas em programas sociais. Já o governo tem planejado zerar o limite do cartão do Bolsa Família para jogos, mudar o titular caso se endivide com apostas ou até suspender o benefício. Essas medidas são constitucionais, ou ainda eficazes, para ajudar no caso das bets junto à população vulnerável?
Eduardo Dias — Como disse, essas medidas podem ser burladas. E se pode considerar que ofendem a autonomia e a liberdade individuais, sendo paternalistas. Defendo o estabelecimento de um limite máximo que a pessoa possa apostar e o monitoramento mais rigoroso por parte das empresas, além de proibição total de publicidade e [promoção de] campanhas informativas que busquem conscientizar sobre o perigo do jogo patológico.
Também é necessário produzir dados, evidências, para orientar as políticas nessa área. A partir da regulamentação e da vigência das novas regras, será possível saber quantos são os apostadores cadastrados, sexo, idade, local de residência, seus hábitos, fiscalizar como as empresas implementam a política de jogo responsável, se identificam – a partir do monitoramento – jogadores compulsivos, se adotam medidas preventivas e protetivas. E a partir daí, em conjunto com o Ministério da Saúde, se devem desenhar políticas para enfrentar melhor o problema da compulsão e do endividamento.
Entrevista Nota 10 — Como os jogos online, especialmente as apostas esportivas, trazem riscos de dependência e endividamento, especialmente em populações mais vulneráveis? Você, que teve um projeto de pesquisa sobre o tema contemplado recentemente por financiamento da Funcap, pode comentar a importância de trazer à luz esse estudo?
Eduardo Dias — Quando iniciei a pesquisa em 2023, não imaginava a dimensão que o problema iria tomar. Estudamos o jogo e o jogo online em outros países e buscamos propor aperfeiçoamentos para a legislação brasileira. O foco é a prevenção do jogo patológico. O transtorno do jogo patológico está inserido, perante a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, nos CIDs 10-Z72 (mania de jogo e apostas) e 10-F63 (jogo patológico), sendo frequentemente associado a indivíduos que apresentam problemas financeiros, como o endividamento excessivo, podendo levá-los ao estresse, à ansiedade, à depressão e, em alguns casos, ao suicídio. Também a quinta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5) classifica o jogo patológico como uma dependência comportamental (behavioral addiction).
Nos Estados Unidos, em 2018, uma decisão da Suprema Corte (Murphy vs National Collegiate Athletic Association, 584 U.S. 453) invalidou a proibição federal de exploração da atividade, constante do Professional and Amateur Sports Protection Act, de 1992, abrindo a possibilidade de Estados disciplinarem as apostas esportivas. 38 Estados norte-americanos legalizaram essas apostas desportivas online, e a receita do setor cresceu 12 vezes desde 2019, tendo sido identificada, nos Estados que permitiram a atividade, uma piora na situação financeira de consumidores, com aumento de endividamento, menos acesso a crédito e maior número de falências pessoais.
A pesquisa que realizamos tem potencial de impactar a discussão do tema. E melhorar a vida das pessoas. Entre as melhorias que podem ser propostas, estudamos o monitoramento algorítmico dos jogadores. Já existe em outros países, como no Reino Unido. O jogador cadastrado em uma plataforma gera padrões de comportamento que podem ser acompanhados por ferramentas de inteligência artificial, incluindo seus padrões de gasto. Isso permite um acompanhamento mais rápido e a adoção de medidas preventivas mais eficientes, como um contato individualizado com o jogador, recomendação para que pare de jogar, que se autoavalie ou procure um serviço médico ou psicológico. É um caminho que podemos seguir também no Brasil, já que a Lei 14.790/2023 prevê a obrigatoriedade de monitoramento dos jogadores.
Também a possibilidade de se criar um mecanismo centralizado de autoexclusão de todas as plataformas. Atualmente, a legislação prevê que cada plataforma preveja a autoexclusão como mecanismo de defesa do jogador. O que se pode avançar é criar um site ou link que permita ao jogador sair de todas as plataformas. Isso já existe no Reino Unido e em Portugal.
Dentre os objetivos da pesquisa, que já produziu artigos submetidos a revistas científicas, está realizar um seminário, na Unifor, em 2025, e elaborar um e-book com propostas de aperfeiçoamento da regulação. Esperamos, com isso, contribuir para um melhor tratamento do tema e para a prevenção de danos à saúde mental, especialmente dos mais vulneráveis.