seg, 10 julho 2023 16:15
Entrevista Nota 10: Serena Crespi e a União Europeia no Direito Internacional
Docente da Universidade de Milão-Bicocca, ela fala sobre a conexão entre Itália e União Europeia, a relação com o Mercosul e a conexão acadêmica entre UNIMIB e Unifor
Estudar apenas o federalismo não mais atende à realidade atual, em que cada arranjo estatal é único, bem como no âmbito das relações internacionais constroem-se novos e inusitados arranjos. Por isso, no primeiro semestre de 2023, o Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) da Universidade de Fortaleza passou a ofertar a nova disciplina de “Teoria da Complexidade Estatal”, regida pelo professor Humberto Cunha Filho.
Como parte do programa curricular da matéria, foi realizado o Ciclo de Lições Internacionais no mês junho. O evento contou com a palestra “O Regionalismo Italiano Hoje”, ministrada pelo professor Omar Chessa, da Universidade de Sassari.
Também houve “A Organização Política da União Europeia”, com o trio de professoras que ministram a cadeira de “Direito da União Europeia”, na Universidade de Milão-Bicocca (UNIMIB): Costanza Honorati, Benedetta Ubertazzi e Serena Crespi.
Para atender demandas da comunidade dessa nova disciplina do PPGD, a docente Serena Crespi fala à Entrevista Nota 10 sobre a conexão entre Itália e União Europeia, a relação com o Mercosul e a importância de aproximações acadêmicas como a que existe entre a UNIMIB e a Unifor.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — A Itália possui a mais antiga universidade do ocidente, em Bolonha. Por outro lado, a Universidade de Milão-Bicocca está celebrando seu 25º aniversário este ano. Pode nos falar um pouco sobre a UNIMIB?
Serena Crespi — A UNIMIB nasceu inicialmente como um campus descentralizado da histórica Universidade "Estatal" de Milão, a fim de permitir uma melhor gestão do elevado número de alunos matriculados em uma estrutura moderna, localizada no antigo complexo industrial da Pirelli — que fica no chamado distrito de Bicocca, em Milão. Em junho de 1998, foi formalmente criada a "segunda Universidade de Milão", que passou a se chamar UNIMIB e se tornou uma instituição independente em relação à Universidade "Estatal" de Milão.
A UNIMIB conta hoje com mais de 37 mil alunos e cerca de 1.100 professores e pesquisadores envolvidos na oferta de ensino (77 cursos de graduação, 19 cursos de doutorado e uma ampla formação de pós-graduação) e pesquisa, com mais de 300 projetos nacionais e internacionais.
A universidade também recebe muitos estudantes estrangeiros de todo o mundo, cerca de dois mil por ano. Eles frequentam as nove graduações oferecidas inteiramente em inglês ou os programas de intercâmbio: Erasmus, EU Double Degree (por exemplo, França e Bélgica) e fora da União Europeia (como Argentina, Rússia e Suíça) ou PhD. Além disso, todos os anos, a UNIMIB recebe um grupo de estudantes chineses que aderiram ao projeto Marco Polo.
Entrevista Nota 10 — Adentrando no assunto do Direito da União Europeia, o fato da Itália ter tido sua própria experiência de unificação, consolidada em 1861, facilitou para que o país estivesse na lista inicial de formação da UE?
Serena Crespi — A Itália é (junto com França, Alemanha, Bélgica, Holanda e Luxemburgo) um dos seis países fundadores da Comunidade Europeia, hoje União Europeia, na década de 1950. Após os horrores, em particular das Guerras Mundiais, que ensanguentaram o continente europeu nos anos 1900 e sobretudo do período da ditadura fascista, a Itália — e Alcide De Gasperi, que liderou sua reconstrução pós-guerra — acreditou imediatamente em um novo modelo de valores, jurídico e econômico.
Por meio da integração, e não só da mera cooperação, entre os Estados europeus e (também) os povos, esse modelo abandona o uso da força e a vontade de conquista. Assenta na aplicação paciente do método democrático, do espírito de consenso construtivo e respeito pela liberdade, para então criar uma solidariedade, de fato, entre os Estados: o sistema da UE tem integrado progressivamente as economias nacionais em um mercado único, baseado nas quatro liberdades de circulação (mercadorias, pessoas, serviços e capitais), por meio de um sistema competitivo, mas, ao mesmo tempo, atento à proteção dos direitos fundamentais.
Entrevista Nota 10 — A União Europeia é uma realidade pujante na cena mundial, mas, em termos da ciência política e do direito constitucional, é um enigma. Nesse contexto, como você classifica a União Europeia?
Serena Crespi — Como disse a Corte de Justiça da União Europeia no histórico julgamento de Van Gend en Loos em 1963, o sistema da Comunidade Europeia, e hoje da União Européia, é uma “ordem jurídica de novo tipo” que — embora finque suas raízes no direito internacional e seja inspirado no funcionamento de sistemas federativos como, por exemplo, o alemão e o norte-americano — assenta-se na invenção de estruturas inéditas, com base no método comunitário (utilização da maioria para adotar decisões) e na centralidade do indivíduo (efeito direto do direito da UE e a supremacia deste sobre o direito nacional), caracterizado pelo papel essencial das instituições europeias (Conselho Europeu, Conselho, Parlamento Europeu, Comissão Europeia e Corte de Justiça), que não tem precedente nos âmbitos dos Estados nem no da cooperação internacional.
Entrevista Nota 10 — Que impactos concretos podem ser sentidos por um italiano, um português ou um francês em decorrência do fato de seus países integrarem a União Europeia?
Serena Crespi — Como evidenciado pela vontade de muitos países vizinhos da União Europeia ameaçados pela guerra (como Geórgia, Moldávia, Ucrânia e Kosovo) de se tornarem Estados-Membros da UE, é porque esta última garante, antes de tudo, aos cidadãos e residentes europeus a possibilidade de viverem em um contexto de paz, democracia e proteção dos direitos fundamentais.
De um ponto de vista mais concreto, e respeitando a diversidade de cada um dos países membros (o lema da UE é a "unidade na diversidade"), a União Europeia permite a todos os seus cidadãos aproveitar oportunidades — como trabalhador, aposentado, estudante, empresário, investidor, entre outros — em um país membro que não seja o de sua nacionalidade, nas mesmas condições que os nacionais. Consubstancia-se no reconhecimento mútuo, em princípio automático, entre os Estados membros da UE de títulos acadêmicos, patentes, linhas telefônicas, cartões de saúde, títulos profissionais, atos públicos e sentenças etc. Tudo isto é a expressão jurídica da confiança mútua entre as nações e os povos na base da construção da União Europeia.
Entrevista Nota 10 — Como vocês encaram o surgimento e ou fortalecimento de outras comunidades internacionais de países, como o Mercosul?
Serena Crespi — A União Europeia, enquanto organização de integração regional, sempre privilegiou a colaboração com outras organizações de integração regional, considerando-as “parceiras mais naturais”. O Mercosul é certamente um desses parceiros privilegiados da UE.
Veja a recente comunicação da Comissão Europeia intitulada "Uma nova agenda para as relações da UE com a América Latina e Caribe" (junho de 2023), que coloca entre os seus principais objetivos a ratificação do acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul e sublinha uma parceria baseada em valores compartilhados e interesses mútuos, em uma ampla gama de setores da sociedade.
Como cidadã da União Europeia, não posso deixar de me regozijar com o desenvolvimento desta cooperação multifacetada, que irá estreitar ainda mais as relações entre os nossos continentes.
Entrevista Nota 10 — Que importância a UNIMIB confere ao intercâmbio com universidades não europeias, como no caso da Universidade de Fortaleza?
Serena Crespi — Como forma de garantir a máxima qualidade da investigação e a sua internacionalização, o Departamento de Direito da UNIMIB sempre privilegiou o intercâmbio e a colaboração com centros de investigação e universidades não só dos Estados Membros da União Europeia, mas também de países não pertencentes à UE.
O período de estudos do professor Humberto Cunha, da Unifor, no Departamento de Direito da UNIMIB em 2022 e a palestra sobre o funcionamento do sistema da União Europeia realizada por mim dentro do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGD) são exemplos concretos disso. Talvez, nos próximos anos, eu também passe um período de pesquisa na Universidade de Fortaleza!