PL da Dosimetria: o que está por trás da proposta aprovada no Plenário do Senado?

seg, 22 dezembro 2025 17:13

PL da Dosimetria: o que está por trás da proposta aprovada no Plenário do Senado?

Entenda como o Projeto de Lei reduz penas para crimes contra o Estado Democrático e reacende debates sobre anistia, golpe e riscos à democracia


O Senado Federal aprovou, no dia 17 de dezembro, o projeto de lei que diminui as penas aplicadas aos condenados pelos atos golpistas (Foto: Getty Images)
O Senado Federal aprovou, no dia 17 de dezembro, o projeto de lei que diminui as penas aplicadas aos condenados pelos atos golpistas (Foto: Getty Images)

A aprovação do chamado PL da Dosimetria pela Câmara dos Deputados reacendeu discussões sobre o futuro das punições relacionadas aos ataques que ocorreram nos edifícios do Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal, no dia 8 de janeiro de 2023 e sobre os limites da atuação do Legislativo diante de crimes contra o Estado Democrático de Direito. 

Aprovado na madrugada do dia 10 de dezembro e negociado entre setores e parlamentares aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, o projeto propõe alterações significativas no cálculo das penas para crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático.

Na última quarta-feira (17), o Plenário do Senado aprovou a proposta após o texto ter passado pela validação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em todas as sessões, o projeto foi alvo de muito debate, pois a possibilidade de redução de penas poderia beneficiar condenados por outros tipos de crimes violentos, como envolvimento com organizações criminosas ou delitos contra a administração pública. A matéria agora segue para sanção presidencial.

O avanço da proposta ocorre em um momento político sensível: semanas após o Supremo Tribunal Federal manter condenações de articuladores e financiadores dos ataques aos Três Poderes, reforçando uma linha dura contra atentados à democracia. Nesse cenário, juristas vêm alertando para os efeitos de suavizar punições justamente quando o país enfrenta as consequências jurídicas de um dos atos mais graves contra a República desde a redemocratização.

Segundo o advogado criminalista Nestor Eduardo Araruna Santiago, professor da graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade de Fortaleza — instituição mantida pela Fundação Edson Queiroz —, o Projeto de Lei em questão (PL 2.162/2023) se apresenta como um movimento político direcionado e incompatível com as normas constitucionais vigentes.

O que é o PL da Dosimetria? Entenda as mudanças

O ponto central do PL da Dosimetria é a redução das penas previstas para crimes já tipificados, como os que aconteceram nos ataques ao Estado Democrático de Direito. Na prática, a nova dosimetria — processo judicial de definição da pena para quem foi condenado — diminui a punição aplicada aos condenados por atos golpistas, além de abrir brechas para alterações na progressão de regime em outros crimes graves.

De acordo com Nestor, o Projeto de Lei não é uma iniciativa impessoal, mas resultado de um cálculo político bem definido. “O PL foi um acordo da Câmara dos Deputados (leia-se Centrão) para reduzir a responsabilidade penal daqueles que participaram da trama golpista contra o Estado Democrático de Direito. Ele propõe diminuir as penas dos condenados por esses crimes que culminaram na tentativa de golpe em 8 de janeiro”, informa.

A análise do jurista explicita o que especialistas apontam como o cerne da proposta: a tentativa de interferir em condenações já em curso e beneficiar diretamente os envolvidos nos ataques. Com a mudança, a pena que antes variava de 4 a 12 anos passa a ser de 4 a 8 anos.

Por que o PL voltou a ser pautado?

Embora o tema já tivesse sido debatido anteriormente, o projeto voltou a ganhar força nas últimas semanas após ter sido aprovado na Câmara do Deputados em regime de urgência, na madrugada do dia 10 de dezembro. A votação, que enfrentou protestos e terminou às 4h da manhã, contou com 291 votos a favor e 148 contra.

Para Nestor, isso ocorre devido à substituição da tese da anistia, defendida por aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro como forma de perdoar, por lei, os crimes relacionados aos atos de 8 de janeiro de 2023, por uma alternativa considerada mais viável do ponto de vista legislativo. “A questão é uma troca da anistia por penas menores”, destaca o docente.

A declaração aponta para um movimento estratégico dentro do campo político conservador: diante da impossibilidade constitucional de uma anistia ampla, abre-se espaço para um mecanismo indireto de suavização das punições.

A forma como o projeto foi votado também gerou críticas. A sessão, realizada em horário pouco habitual e estendida pela madrugada, levantou questionamentos sobre transparência e urgência. Para o professor Nestor, não há justificativa técnica ou administrativa que sustente a pressa.

“Mais uma vez, a Câmara dos Deputados deu um exemplo pouco republicano e fisiológico de agir. Nada justifica essa urgência, a não ser um pretenso discurso de ‘pacificação’”, afirma Nestor, que também lidera o Laboratório de Pesquisas Empíricas em Ciências Criminais, Garantismo, Estudos Sócio-Legais e Direito Lusófono (LACRIM) da Unifor.

O argumento da “pacificação”, segundo o professor, tem sido utilizado como retórica política, mas não encontra respaldo jurídico. Essa avaliação sintetiza o diagnóstico crítico feito por diversos especialistas em relação ao projeto.

Impacto direto sobre as condenações do 8 de janeiro

O aspecto mais sensível do debate é o impacto direto do PL da Dosimetria sobre os já condenados pelos ataques golpistas. De acordo com o docente, os efeitos seriam amplos e imediatos, indo além dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro.

“Todos os condenados serão beneficiados, mas não só eles, principalmente porque há uma mudança de regra na progressão de regime prisional que se estende também a outros crimes igualmente graves”, pontua Nestor. Isso significa que a aprovação criaria um novo marco penal, reduzindo o tempo de cumprimento de pena em regime fechado e acelerando a migração para regimes mais brandos.

Embora a anistia aos envolvidos no 8 de janeiro seja defendida por alguns setores políticos, ela esbarra em limitações constitucionais. O professor é categórico: “Não há como anistiar crimes praticados contra o Estado Democrático de Direito. A Constituição proíbe”.

Esse ponto reforça a leitura de que o PL 2.162/2023 surge como alternativa para contornar uma impossibilidade jurídica, pois se a anistia não pode ser concedida, reduz-se a pena. É justamente nesse movimento que se concentram as principais críticas ao projeto, sobretudo diante do contraste entre a gravidade dos crimes e o abrandamento das consequências previstas.

Um dos comparativos mais citados nas últimas semanas diz respeito à proporcionalidade das punições. Com o Projeto de Lei, crimes como tentativa de golpe de Estado passariam a ter penas menores do que delitos como roubo de celular. Especialistas alertam que a combinação entre a redução da pena-base e a flexibilização da progressão enfraquece o caráter punitivo e dissuasório da legislação.

Entre os riscos apontados pelo professor, o mais grave está na mensagem simbólica transmitida à sociedade e no impacto sobre o futuro das instituições democráticas.


“Será vergonhoso para o Brasil a aprovação desse PL. Vai dar a impressão que qualquer um pode tramar golpe de Estado e que as penas serão brandas. E, claro, estamos mais uma vez afrouxando as penas de golpistas, já que o Brasil tem um problema sério em tentar punir quem dá golpe de Estado. A história do país mostra isso.”Nestor Santiago, advogado criminalista e docente do curso de Direito e do PPGD da Unifor

O alerta remete a um problema histórico do país: a recorrente impunidade em episódios de rupturas institucionais, como os golpes de Estado de 1937, 1964 e outras tentativas ao longo do período republicano.

Questionado sobre a legalidade do texto, o especialista é direto: “Não [é legal], pois é uma lei casuística, desproporcional e dirigida para resolver o problema de Jair Bolsonaro”. A crítica reforça o entendimento de que normas elaboradas para atingir casos específicos violam princípios constitucionais como a impessoalidade, a separação dos poderes e a vedação ao retrocesso institucional.

Assim, ao nascer marcada por um propósito circunstancial, a proposta passa a ser vista não apenas como tecnicamente inadequada, mas como um potencial fator de enfraquecimento das bases democráticas. Ao flexibilizar penas e alterar a lógica de punição para crimes graves contra o Estado, o PL da Dosimetria caminha na direção oposta ao entendimento do STF e tensiona ainda mais o equilíbrio institucional construído após os ataques de 2023.

A comparação com a Lei da Anistia da ditadura militar

No debate público, há uma comparação frequentemente feita entre a anistia defendida para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro e a Lei da Anistia de 1979, aprovada durante a ditadura militar. Para Nestor Santiago, equiparar os dois contextos representa um equívoco grave.

“Naquele momento (1964-1985), o Brasil viveu uma ditadura cruel e sangrenta. Agora, vivemos em uma democracia que foi atacada por golpistas que desejavam desestabilizar o Estado brasileiro, já que não reconheciam o resultado das urnas”, pondera o advogado criminalista.

Ao passo que a anistia outorgada durante o período militar visava restaurar o pacto democrático e libertar presos políticos perseguidos pelo regime autoritário, diz o professor, a demanda atual busca amenizar as punições aplicadas àqueles que tentaram desestabilizar a própria democracia.

Um projeto que marca o momento político brasileiro

O progresso do PL da Dosimetria revela as tensões entre o Legislativo, o Judiciário e grupos da sociedade que buscam alterar a narrativa a respeito dos ataques de 8 de janeiro. O debate vai além do âmbito jurídico e expõe conflitos mais abrangentes relacionados à memória, à justiça e ao futuro da democracia no Brasil.

A análise do professor Nestor Santiago adverte sobre o perigo do Brasil reproduzir padrões históricos de condescendência com golpistas. Em um cenário em que as instituições se dedicam para reforçar os mecanismos de proteção ao Estado Democrático de Direito, o PL da Dosimetria se apresenta como um exame crucial do compromisso do Congresso Nacional com a manutenção da ordem constitucional.

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