A consciência pela inclusão racial

seg, 20 novembro 2023 12:19

A consciência pela inclusão racial

Conheça iniciativas criadas e mantidas por alunos e professores da Universidade de Fortaleza para ampliar o debate e a conscientização sobre o antirracismo no mundo acadêmico


A educação antirracista é uma das bandeiras levantadas pelo movimento negro para promover uma real mudança social (Foto: Ares Soares)
A educação antirracista é uma das bandeiras levantadas pelo movimento negro para promover uma real mudança social (Foto: Ares Soares)

É tempo de reconhecer a resistência da população negra no Brasil. Vinte de novembro: a morte de Zumbi de Palmares, referência na luta contra a escravidão, passou a ser o Dia Nacional da Consciência Negra há 12 anos no país. Uma data símbolo dedicada ao protagonismo da cultura e das raízes ancestrais do povo de origem africana, mas também para combater o racismo, discutir sobre o longo caminho em busca por igualdade e respeitar a causa negra.

Neste momento de reflexão em sociedade, apresentamos algumas iniciativas e ações criadas e mantidas por alunos e professores da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, para expandir o debate e a conscientização sobre a igualdade racial. De coletivo de estudantes a documentários e eventos, docentes e discentes ampliam cada vez mais as vozes pelo antirracismo.

Multiplicar o letramento racial

“O racismo é, dentre tantas coisas, uma fatal falta de educação”, diz a estudante Dhara Amorim, aluna do curso de Jornalismo. Ela se identificou como uma mulher negra fora da Universidade e sentiu a necessidade de levar reflexões e debates para dentro do campus. “Letramento racial e educação antirracista devem ser disciplinas obrigatórias em todos os cursos de todas as instituições”, defende a estudante.

Com alguns amigos de diferentes cursos, ela criou um grupo em um aplicativo de mensagens para debater questões raciais. Daí nasceu o coletivo Negrada Unifor, que foi reunindo outros estudantes e recebendo apoio de professores. O grupo hoje é um multiplicador de ações e eventos relacionados à pauta antirracista. Promoveu, por exemplo, a I Semana de Consciência Negra da Unifor, no ano passado.

Dhara tem dado sua contribuição, tendo dirigido a série documental Mundo Black Fortal, produzida pela TV Unifor, com quatro episódios que tratam sobre a negritude em Fortaleza. Nela, a estudante fala sobre arte decolonial, trancismo e autoestima, educação antirracista, “conhecipreto”, além de outros assuntos que a cultura negra agrega no território de Chico da Matilde e Preta Simoa.

O trabalho potente lhe rendeu uma premiação internacional: o 11º Premio Nuevas Miradas en la Televisión, na categoria Micro Periodístico-Documental. “Foi um trabalho paralelo ao coletivo, mas aconteceu quase simultaneamente”, conta. Nele, participaram também alguns integrantes do grupo, que estava se formando, e uma equipe de produção majoritariamente negra.

Atuando em tantas frentes na luta de inclusão racial, Dhara diz ver em suas ações uma contribuição que tenta honrar tantos ancestrais que lutaram por igualdade. “É pelos que já passaram e pelos que virão. Quero que meus filhos frequentem uma escola e uma universidade com a segurança de quem são e do que podem fazer, sem violência e ignorância, sem ninguém delimitando espaços a eles”, diz.

Conforme explica Dhara, não se trata de criar “espaços da negritude”, o que soaria segregacionista. “Estamos por todo o campus, sempre estivemos. Se hoje temos que construir algo é a conscientização racial, promover debates, grupos de estudo e aulas falando sobre antirracismo”, afirma. Afinal, os ambientes devem ser ocupados por todos.

O movimento, salienta, tem mais a ver com a conscientização das pessoas para não enxergarem a negritude como um espaço a ser conquistado, mas como uma vertente da sociedade que é prejudicada e, por vezes, negada nesses lugares. “O coletivo Negrada surge como polinizador para atentar as pessoas deste mal, velado ou não, que é a estrutura racista”, afirma.


“Sei que o racismo ainda vai existir por muito tempo, mas é trabalhando hoje que esse tempo vai diminuindo. É fortalecendo e informando às crianças que ele vai diminuir cada vez mais e com menos sofrimento. É colocando as instituições de ensino como agentes promotores dessas mudanças.”Dhara Amorim, estudante de Jornalismo da Unifor

Dividir dores e olhares

A necessidade de abrir mais caminhos para a inclusão racial na sociedade levou o coletivo Negrada a promover a aula aberta “Educação Antirracista: caminhos para uma sociedade sem discriminação”, ministrada em março deste ano pelo professor do curso de Administração e coordenador do Laboratório de Pesquisas em Inovação e Gestão (Lapig), Bruno Lessa.

Como um homem negro e periférico, Bruno diz que sente a necessidade de promover debates pertinentes a pessoas como ele. “Existia um espaço amplo para a discussão e o avanço de questões relativas à comunidade preta e parda que existe dentro da Universidade e que, cada vez mais, queria ter voz ouvida e projetada nos mais variados espaços da nossa instituição”, conta o docente. 

O coletivo Negrada então pensou no formato, aglutinou outros coletivos para além dos muros da Unifor e conseguiu realizar um evento que lotou o Teatro Celina Queiroz. No palco, pessoas negras debatiam sobre estratégias de reconhecimento e enfrentamento racista, lembrando para quem às vezes desacredita de seu potencial que podem e devem ocupar espaços como este.


Primeira aula aberta sobre educação antirracista aconteceu no dia 30 de março (Foto: Divulgação/Coletivo Negrada)

“Foi inesquecível”, diz o professor Bruno, que contribuiu dando o arcabouço teórico e debatendo junto os temas. “Foi um momento construído coletivamente e protagonizado por pretas, pretos e pretes de muita potência”, rememora. Ele diz tentar contribuir com a causa dentro dos espaços de representatividade sempre que pode, servindo como uma forma de inspiração para outros negros.

“Sei do valor que a representatividade tem, logo, tento ser aquele exemplo de professor negro que não tive durante minha formação acadêmica, uma vez que só tive professores brancos, ou até mesmo pardos que não se identificavam como pessoas pretas e, em alguma medida, tinham até medo de trazer esse debate por considerarem que estariam fazendo política, doutrinação ou algo similar, infelizmente”, explica. 

As iniciativas da comunidade acadêmica, para ele, são essenciais porque ampliam a integração da comunidade negra na Universidade. “Essas ações nos dão visibilidade, permitem que sejamos reconhecidos e legitimados pela comunidade universitária como um todo”, defende.


“Iniciativas como essas mostram que existimos, que temos valor e que somos parte fundamental tanto da Unifor quanto do país como um todo. Além disso, essas iniciativas trazem o racismo que estrutura a sociedade brasileira à luz, estimulando o meio acadêmico a discutir ações que possam não apenas revelar como ele se expressa nos nossos espaços, mas também nos permite refletir sobre formas de enfrentamento.” Bruno Lessa, professor do curso de Administração e coordenador do Lapig

Por mais reconhecimento, representatividade e amor

A luta antirracista também há de passar pela valorização da negritude que existe no ambiente acadêmico. Vinicius Pereira, aluno do curso de Psicologia, sabe disso. Quando ingressou pela primeira vez na Universidade, para cursar Direito, foi tomado pela solidão. “Ainda não tinha abraçado minha negritude, pois, até então, nunca tinha sido incentivado a amá-la”, conta.

Cerca de um ano depois, logo após mudar para a Psicologia, foi convidado por uma amiga a participar de um grupo de estudos sobre Relações Raciais. Foi o primeiro contato de Vino, como é conhecido, com pessoas que batiam de frente contra o racismo e falavam com orgulho de sua negritude. “Compartilhando daquele espaço, passei a reconhecer, validar e enaltecer a mim e minhas experiências enquanto pessoa negra”, lembra. Depois disso, ele virou um mediador do grupo.

“Minha missão passou a ser a de acolher o máximo de pessoas negras que, por algum motivo, se sentiam sozinhas [...], sempre adotando um viés do letramento racial, do empoderamento da negritude e, indispensavelmente, do antirracismo”, conta.

Vino tem consciência de que todo e qualquer espaço construído no campus é também um espaço da negritude. O que ele tem feito é mergulhar na construção de estratégias de (r)existência para o desenvolvimento de uma consciência antirracista. Um exemplo disso é o grupo de estudos de Negritude e Antirracismo.


“Temos a missão de criar novas formas de existir para os que se identificam enquanto uma pessoa negra dentro da universidade, existência essa que há de ser marcada por reconhecimento, representatividade e amor”Vinicius Pereira, estudante de Psicologia da Unifor

Trata-se de um espaço dedicado à promoção da igualdade, à conscientização sobre o antirracismo e à celebração da riqueza da cultura negra, tendo sido criado a partir de uma colaboração entre o Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES) — que Vino integra como bolsista de iniciação científica —, e o coletivo Negrada.

Dhara Amorim, Ana Valquíria e Fernando Pinto também são líderes nesse grupo, que consolidou-se como um espaço de acolhimento para várias pessoas negras da Unifor e de outras universidades, além de estimular a consciência de inclusão racial entre os participantes.

Acolher para crescer

“Eu fui sugado para essa temática”, diz o egresso do curso de Psicologia da Unifor, Fernando Pinto. Integrante do Lepes e do coletivo Negrada, ele conta que se formou antes de o movimento Black Lives Matters ter mais visibilidade e de o filme Pantera Negra (2018) pautar a excelência negra.

Ao se formar, estava preocupado apenas com o olhar teórico, mas, com o tempo, sentiu a necessidade de abraçar essa responsabilidade. Com o movimento na clínica psicológica voltada ao público preto aumentando, começou a criar iniciativas destinadas a estas pessoas, o que culminou no trabalho “Reconexões Negras”, grupo voltado para a valorização da autoestima negra e desenvolvimento pessoal em 2018.

“Abraçando mais estes temas e pensando em produções acadêmicas, ingressei no Lepes em 2020. No laboratório havia um grupo voltado para relações raciais, não exatamente sobre negritude. Conforme o tempo passou, por iniciativa de Vinicius e Dhara, o grupo transformou-se em uma iniciativa mais objetiva e focada para a população negra”, conta.

Fernando explica que o grupo nasce de uma preocupação com as pessoas negras e os problemas estruturais encontrados no ensino superior e referendados por pesquisas. Eles realizam encontros semanais para favorecer o conhecimento das pessoas em relação a negritude, pensamentos antirracistas, ancestralidade, afropessimismo e afrofuturismo.


“Como resultado, obtivemos uma experiência de negritude saudável no campus, um espaço de acolhimento, discussão e descobertas afrocentradas, refletimos sobre soluções e desconstruções que foram importantes. Agora, acima de tudo isso que foi dito anteriormente, resgatamos mais do nosso senso de pertença e comunidade.”Fernando Pinto, egresso do curso de Psicologia e integrante do Lepes

Por uma academia mais sensível a questões étnico-raciais

Professora do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA) da Unifor, Keysa Mascena desenvolve ações sobre negritude principalmente no âmbito de pesquisa, disseminação e apoio às iniciativas.

“Na pesquisa, atualmente sou orientadora de dois trabalhos voltados para essa temática: uma tese de doutorado sobre violência cultural racial e a atuação dos coletivos negros e um TCC de graduação sobre empreendedorismo feminino negro, os desafios e comportamentos de superação das mulheres negras empreendedoras”, conta.

Essas pesquisas são trabalhadas no Grupo de Pesquisa sobre Gestão, Sociedade e Stakeholders (GPGSS), liderado por Keysa na Unifor. A professora também costuma dar palestras em eventos de Semana da Consciência Negra, turmas da Pós-Unifor e em outras oportunidades, como em uma ocasião internacional onde foi palestrante. Ela ainda reforça sua atuação junto ao coletivo Negrada.

Keysa destaca que a população negra ainda enfrenta muitos desafios para acessar o ambiente acadêmico e o mundo da pesquisa e da inovação. Para ela, a presença negra na docência e na pesquisa científica é de extrema relevância para o fortalecimento das ações voltadas à população negra na universidade.


“Docentes e pesquisadores negros e negras superaram muitos desafios para alcançar sua posição nas universidades e são sensíveis a questões étnico-raciais. A diversidade no corpo docente é relevante para que mais iniciativas sejam voltadas à população negra e também são representação e inspiração para os discentes.”Keysa Mascena, professora do PPGA da Unifor

Se existem barreiras estruturais para a presença da população negra nas universidades, quando nos referimos às mulheres negras, esses obstáculos são ainda maiores. Ela se coloca à disposição para todos que tenham o desejo de conversar e pesquisar sobre esses tópicos.

A pauta antirracista deve estar em todos os lugares

O estudante Miguel Moreira abraçou uma área profissional em que o foco sempre lhe pareceu mais voltado aos números do que ao pensamento social. Aluno do curso de Engenharia Mecânica, ele encontrou no coletivo Negrada um espaço para exercitar a reflexão antirracista e conversar sobre os temas raciais que lhe movimentavam.

“Na área de exatas temos um estereótipo de aluno e temos a realidade de que esse estereótipo representa parte dos cursos, mas não os cursos inteiros”, pondera. Por isso, passou a participar dos eventos de outras graduações e abraçou a missão de tentar aproximar seus colegas destes debates.

“Acredito que há uma necessidade de se tratar sobre esses assuntos no âmbito das engenharias”, diz. Miguel costuma convidar os companheiros de sala de aula para participar dos eventos e palestras que trazem a temática.


Miguel é aluno do curso de Engenharia Mecânica da Unifor (Foto: Ares Soares)

Também é importante que a STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) se aproxime destas questões. Miguel diz acreditar que pessoas pretas possuem uma pressão muito maior e mais obstáculos para alcançar uma posição de segurança e estabilidade no mercado de trabalho.

“Acredito que isso não seja apenas por conta do preconceito diretamente falando, mas também pelas estruturas do sistema que forçam o aluno a tentar estar sempre um passo à frente, sempre alerta e nunca despreocupado com parâmetros, situações que já são mais do que retrógradas”, diz.

Também é sobre reduzir desigualdades

O racismo estrutural afeta diretamente as desigualdades sociais e o acesso a direitos, inclusive o da educação. Essa realidade não está deslocada do ensino superior. Neste sentido, as Bolsas Cebas (Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social), instituídas pela Fundação Edson Queiroz a partir de 2023, desempenham um importante fator no âmbito de oportunidades para a formação acadêmica e profissional de uma parte da população negra.

As bolsas oferecem descontos de 50% e 100% para alunos em todos os cursos de graduação presencial e EAD da Unifor. Enquanto as bolsas integrais destinam-se a pessoas com renda familiar bruta mensal per capita de até um salário-mínimo e meio, as bolsas de 50% se destinam a estudantes com renda familiar bruta mensal per capita de até três salários-mínimos. 

Francisco Medina, professor da graduação em Direito e coordenador de cursos de especialização da Pós-Unifor, destaca que essas bolsas não apenas oferecem acesso à educação superior, mas também funcionam como instrumentos de empoderamento, capacitando indivíduos a superar barreiras históricas e contribuir de maneira mais equitativa para a sociedade.


“As Bolsas Cebas desempenham um papel crucial ao proporcionar oportunidades significativas para a formação acadêmica e profissional de uma parcela da população negra que enfrenta os impactos do racismo estrutural.”Francisco Medina, professor do curso de Direito e coordenador de cursos da Pós-Unifor

Segundo ele, iniciativas como estas são fundamentais para provocar uma mudança de realidade, pois atuam diretamente na quebra de barreiras socioeconômicas e educacionais que perpetuam desigualdades. “Ao oferecer oportunidades iguais de desenvolvimento, essas iniciativas contribuem para a construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e representativa, promovendo uma mudança cultural e estrutural necessária”, salienta.

O professor Bruno Lessa concorda que as Bolsas Cebas desempenham papel fundamental na promoção da igualdade de oportunidades educacionais e na mitigação dos efeitos do racismo estrutural na sociedade, especialmente para a população negra.

“A presença de estudantes negras, negros e negres beneficiados por essas bolsas em instituições de ensino promove um ambiente mais diverso e inclusivo, o que é essencial para a conscientização sobre questões raciais e para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária”, afirma.

Outras maneiras de transformar

Francisco Medina lembra que o Direito possui uma função essencial na transformação da sociedade, ao ser uma ferramenta poderosa para incentivar e promover a inclusão racial. Através de políticas e legislações assertivas, ele diz, é possível criar bases sólidas para a igualdade, assegurando direitos, promovendo a diversidade e responsabilizando aqueles que perpetuam práticas discriminatórias em toda a sociedade.

Outra maneira de transformar é a prática de ESG (Ambiental, Social e Governança, na sigla em português) nas empresas, que também impacta o âmbito corporativo e pode contribuir para a mudança na realidade racial.

Ao incorporar práticas ESG, as empresas demonstram comprometimento com a responsabilidade social, inclusão e diversidade. Isso não apenas melhora a imagem corporativa, mas também influencia positivamente na construção de ambientes de trabalho mais justos e equitativos, combatendo o racismo sistêmico”, finaliza.