Entrevista Nota 10: Daiana Gomes e o acesso ao conhecimento sobre direitos trabalhista por meio da arte
seg, 6 novembro 2023 15:20
Entrevista Nota 10: Daiana Gomes e o acesso ao conhecimento sobre direitos trabalhista por meio da arte
Mestranda em Direito e Gestão de Conflitos, a juíza do trabalho fala sobre a importância da acessibilidade jurídica e comenta os benefícios sociais do Programa Justiça com Arte, do qual é coordenadora
O direito ao trabalho livre, justo e remunerado é uma das questões fundamentais que o artigo 23º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) busca promover e incentivar pelo mundo. No Brasil, a garantia desse direito para a população é uma das responsabilidades da Justiça do Trabalho, que concilia e julga as ações judiciais entre trabalhadores e empregadores.
Além de lidar juridicamente com as questões trabalhistas, muitos ramos deste poder judiciário pelo país também promovem a capacitação de seus profissionais e a aproximação com a sociedade. Esse movimento, que busca facilitar o acesso ao conhecimento, acontece por meio de iniciativas como o Programa Justiça com Arte.
“O Programa visa aproximar cada vez mais o poder judiciário da comunidade e usa a arte como ponte, porque a arte aproxima e conecta as pessoas, é universal”, conta a coordenadora Daiana Gomes Almeida, juíza do trabalho substituta no Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT7), no Ceará.
A idealizadora do projeto afirma que “desde a pessoa mais letrada até a não letrada consegue compreender a linguagem das manifestações artísticas, sejam elas música, teatro, pintura, dança”. No caso do Programa, a expressão utilizada é a do cinema, com exibições de filmes que abordam temas como direitos trabalhistas e desigualdade social.
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Daiana começou a desenvolver a iniciativa dentro do Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos da Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz, onde é aluna. Foi por lá que também concluiu a Especialização Direito Processual Penal.
Ela ainda possui diversas pós-graduações: em Psicanálise, em Direito e Processo do Trabalho, em Direito Previdenciário e Mediação de Conflitos e em Práticas Sistêmicas Restaurativas, todas pela Faculdade de Ciências e Tecnologia de Teresina (FACET); e em Economia do Trabalho, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Daiana é pós-graduanda em Direito Constitucional, Sociologia do Trabalho e Canto Popular, pela Faculdade Unyleya, e já foi servidora pública do TRT7 e promotora de justiça do Ministério Público do Ceará. Na Entrevista Nota 10 desta semana, ela fala sobre a importância da acessibilidade jurídica e comenta os benefícios sociais do Programa Justiça com Arte.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Poderia contar um pouco da sua trajetória na justiça e por que escolheu atuar na área trabalhista?
Karina Patrícia — Desde os tempos de universidade, eu tinha o sonho de um dia me tornar juíza, mas eu nunca descartei a possibilidade de realizar outros concursos. Nessa maratona de concursos, tive várias reprovações e tive também boas aprovações. Uma delas foi a de técnico judiciário, que na época era de nível médio, do TRT7. Trabalhei por aproximadamente cinco anos na Justiça do Trabalho, mas, como se tratava de um cargo de nível médio, continuei na dedicação a concursos, dessa vez para nível superior.
Fui aprovada no cargo de promotora de justiça do Ministério Público do Estado do Ceará, atuação que perdurou quatro anos: os dois primeiros na Promotoria de Icapuí, os outros dois na Promotoria de Jaguaribe. Mas sempre com o coração lá na Justiça do Trabalho, na vontade de voltar para o “meu cantinho”, onde comecei a minha atividade profissional no espaço jurídico. Continuei estudando e, depois de exatos dois anos, eu logrei aprovação em dois concursos — um de juiz do trabalho em Mato Grosso, no qual tirei o primeiro lugar, e outro de juiz do trabalho na Bahia. Eu e meu esposo, que também é juiz do trabalho, passamos quatro anos na Bahia, depois pedimos remoção para o Ceará e cá estamos há 16 anos.
Se a gente se dispõe a fazer vários concursos, não é bem a gente que escolhe a área, é a área que escolhe a gente. No início foi assim porque eu estava realizando concurso de nível médio para várias instituições, e então logrei êxito na área trabalhista. Começando a trabalhar, eu realmente não tinha afinidade com o ramo.
Agora, se você me perguntar por que eu quis voltar para a área trabalhista, eu vou te dizer que foi por amor. Isso porque meu amor foi nascendo à medida em que fui tendo contato com o direito e a justiça do trabalho e vendo quão importante eles são para o equilíbrio entre as relações trabalhistas no que diz respeito àquela tensão entre o capital e o trabalho. O quão importante é termos uma justiça social, que é a justiça trabalhista, não é? A justiça do trabalho é o meu coração.
Ela não é aquela justiça que muitas pessoas, por desconhecimento, acabam achando que é só monetarizar, só “vamos fazer um acordo”. Não! A justiça do trabalho é uma justiça social. É uma justiça que se preocupa com a livre iniciativa e com a economia, sim, mas se preocupa também com a dignidade do trabalhador, com o valor social do trabalho, em equilibrar esses princípios constitucionais de tal forma que possamos ter uma evolução econômica e também trabalho digno. Tudo junto, em harmonia.
Entrevista Nota 10 — Hoje como juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (TRT7), você lida com casos e questões trabalhistas cotidianamente. Mesmo sendo um local onde o direito do trabalho permeia basicamente todos os setores, existe ainda alguma necessidade de atenção especial ou conscientização dos profissionais que ali atuam sobre o assunto?
Karina Patrícia — O direito do trabalho e o direito processual do trabalho — devido à complexidade das relações humanas, à evolução da nossa era contemporânea e a todos os entrelaçamentos de tantas camadas da sociedade — se tornaram complexos por conta do avanço tecnológico e do desenvolvimento econômico. Por isso, nós precisamos estar em constante aprendizado. E quando falo nós, eu me refiro tanto aos servidores da justiça do trabalho como também aos juízes e desembargadores.
Precisamos voltar nossos olhos para uma capacitação, aprendizado e interação também às mais diversas camadas da sociedade. Nós temos uma Escola Judicial, que promove cursos e tem um programa de formações obrigatórias. Por exemplo, nós, servidores, magistrados e desembargadores, temos também uma carga horária mínima a cursar. Temos ainda algumas possibilidades de agregar esse ensino aos estagiários e terceirizados.
Além disso, temos o Programa Justiça com Arte, com o qual levamos esse conhecimento para a comunidade, as pessoas de fora: sindicatos, trabalhadores, empregadores, estudantes (inclusive do direito), jovens aprendizes. Todo esse público é um público alvo, principalmente agora, do Justiça com Arte, porque ele abriu as portas para compartilharmos conhecimento não só internamente com os profissionais, mas também com o povo. Não é uma exclusividade do Justiça com Arte, também existem outros programas e ações que promovem esse conhecimento no TRT7.
Há ainda a questão de treinar o profissional para que ele saiba atender cada vez melhor o público e promova um atendimento humanizado aos cidadãos que chegam na Justiça do Trabalho e ali precisam de orientação e respostas sobre seu processo, sobre sua causa. Dentro dos cursos da Escola Judicial essa parte também é muito trabalhada. Nossos profissionais — servidores, magistrados, desembargadores — são pessoas que procuram a cada dia evoluir, no sentido de compreender a importância de servir. A Justiça do Trabalho é um serviço público e social. Nós estamos aqui para servir à população em suas necessidades, no que diz respeito às nossas competências e esferas de atuação.
Entrevista Nota 10 — Como surgiu a ideia do Programa Justiça com Arte? O que ele traz de benefícios para a comunidade que constrói o TRT7, assim como para a sociedade?
Karina Patrícia — O Programa Justiça com Arte surgiu de uma exibição do filme “Pureza” (2019), do diretor Renato Barbieri, tendo como protagonista a atriz Dira Paes. É um filme fantástico, que foi exibido no ano passado na Semana Institucional, na Escola Judicial do TRT7, em uma sessão fechada apenas para magistrados e magistradas. Na ocasião, logo após a exibição do filme, tivemos a grata oportunidade de ter um bate-papo com o diretor Renato Barbieri, que entrou na nossa sala virtualmente.
Quem estava mediando esse momento era eu. Não só na conversa, mas principalmente no filme, fiquei extremamente impactada com a mensagem e as lições que ele nos trouxe sobre os perigos do trabalho escravo contemporâneo. E outros temas também, porque o filme é multifacetado, com temáticas importantíssimas, não só a questão do trabalho escravo atual, como ainda questões de gênero, de desigualdade social, de pobreza, de dificuldade de empregabilidade. É um filme incrível! Ele me tocou bastante.
E na ocasião do nosso bate-papo com o Barbieri, eu disse “Gente, nós precisamos levar esse filme para todas as pessoas. Ele não pode ficar só aqui em sessões fechadas”. Até então, o longa-metragem estava passando só no cinema, ele ainda não estava na Netflix, como hoje está, e não tinha sido exibido pela rede Globo, como foi recentemente — inclusive com altos índices de audiência.
Então, me veio isso. Aí eu falei “vamos criar uma ação social, fazer um projeto para levarmos esse filme para as demais cidades do interior do Ceará, principalmente àquelas onde haja mais foco de trabalho escravo”. E foi assim que o Programa Justiça com Arte nasceu, primeiro embrionariamente como um projeto de uma ação social. Só que, hoje, essa ação social é apenas a ação inaugural, porque o Programa realiza várias outras ações envolvendo direito e arte.
Hoje o Programa Justiça com Arte é institucionalizado pelo ato 137, de 2023, do TRT7. É um programa não só permanente como pioneiro: é o primeiro Tribunal a realizar essa iniciativa. O Programa visa aproximar cada vez mais o poder judiciário da comunidade e usa a arte como ponte, porque a arte aproxima e conecta as pessoas, porque ela é universal. Desde a pessoa mais letrada, menos letrada até a mesmo não letrada, ela consegue compreender a linguagem das manifestações artísticas, sejam elas música, teatro, pintura, dança.
Então, nós trabalhamos com todas as manifestações artísticas existentes, e é com essa ponte, essa ferramenta, que nós estamos cada vez mais nos aproximando, promovendo ações sociais, onde a gente vai até o povo, fala sobre os direitos fundamentais e ainda leva cultura e a democratização dela. O que também é importante, porque nem sempre a cultura chega de uma forma gratuita, e nós fazemos isso de forma voluntária e gratuita.
Ainda levamos juízes juntos, com os quais as pessoas podem dialogar fora da sala de audiência, porque a sala de audiência é um local muito formal. Existem regras processuais determinadas na lei que precisamos cumprir. É claro que tentamos quebrar um pouco esse clima de formalismo em excesso, procuramos ser próximos também dentro da sala de audiência, mas chega um limite que não dá.
Fora do gabinete é que o juiz ou a juíza pode ter contato com a comunidade e a sociedade. Não é só levar conhecimento, é também aprender e apreender conhecimento com o povo, saber qual é a justiça que o povo quer, o que que as pessoas esperam de nós enquanto poder judiciário. E a ponte principal que usamos para isso é a arte. Já realizamos várias ações fazendo isso, e foi muito maravilhoso, está sendo maravilhoso e vai ser cada vez mais.
Entrevista Nota 10 — Em sua perspectiva, de que forma a arte — em especial o cinema — e a cultura contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária? O Direito pode plantar e colher frutos por meio dela?
Karina Patrícia — Sim, o direito e a arte precisam caminhar cada vez mais juntos. Direito e arte simbolizam a junção de duas interdisciplinaridades que são capazes de tocar o ser humano. Todas as pessoas precisam conhecer seus direitos e todas as pessoas se encantam com a arte, de um modo geral, é de fácil encantamento. O direito, por ser muito formal, e a arte, por ser muito informal, ao se misturarem, fazem a simbiose de uma combinação perfeita para levarmos conhecimentos jurídicos e extrajurídicos à população.
Entre ministrar uma aula toda formal passando conhecimento jurídico e exibir, por exemplo, um filme como o “Pureza” — levando vários estudantes para assistirem e se impactarem com aquelas questões relacionadas ao trabalho escravo contemporâneo, às mazelas das desigualdades sociais e outras várias questões —, eu diria que a eficácia, o aprendizado e a fixação para toda a vida daqueles alunos é muito maior dentro de uma sala de cinema do que assistindo uma aula formal.
Cito como exemplo concreto os dias 13 e 14 de setembro, quando lotamos o Cineteatro São Luís, que tem capacidade para 1.100 pessoas, com estudantes do ensino médio e de outras outras áreas. Exibimos esse filme e foi maravilhoso, porque os jovens puderam ter consciência e conhecimento de que o trabalho escravo nunca deixou de existir, ele apenas mudou de formato. Deixou aquela configuração de senzala, que vemos em filmes de época, para um modelo contemporâneo, que precisa ser trazido ao conhecimento das pessoas para que elas não caiam nessa cilada. A arte, então, consegue comunicar divinamente bem, muitas vezes mais do que jargões jurídicos. É com a arte mesmo que o direito tem que se pegar e levar todo esse conhecimento.
Com relação ao cinema, sabemos que pagar um ingresso não é para qualquer pessoa, às vezes uma entrada de cinema não está ao alcance de todos. Já com o Programa Justiça com Arte, fazemos também uma democratização da cultura e do acesso ao cinema, procurando levar filmes de qualidade que possam fazer com que a pessoa entre naquela sala de cinema e saia outra, mais evoluída em termos de apreensão de conhecimentos fundamentais para sua sobrevivência e desenvolvimento pessoal e profissional.
É muito gratificante quando conseguimos despertar a consciência das pessoas por meio da arte, e uma arte que chega de forma acessível e gratuita. É uma contribuição imensa para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Entrevista Nota 10 — Além de ser especialista em Direito Processual Penal pela Unifor, você também é aluna do Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos na instituição. Como essas formações promovidas pela Universidade de Fortaleza preparam para o mercado de trabalho e têm influenciado sua carreira?
Karina Patrícia — A Especialização em Direito Processual Penal que fiz pela Unifor foi de grande valia na época em que eu fui promotora de justiça. Sou muito grata à Universidade de Fortaleza por ter cursado essa formação de alto nível, com excelentes professores. Com relação ao Mestrado que atualmente estou cursando, ele foi essencial e de uma importância tremenda na construção do Programa Justiça com Arte.
Inclusive, o tipo de dissertação no mestrado profissional exige que elaboremos um projeto concreto, e a minha dissertação traz como projeto essa iniciativa. Então, o Programa Justiça com Arte e o Mestrado Profissional em Direito e Gestão de Conflitos da Unifor têm tudo a ver. Posso dizer também que o nascedouro do Programa adveio do curso, ou seja, adveio dos meus conhecimentos adquiridos junto à Universidade. Faço aqui meus agradecimentos à instituição pelo surgimento desse projeto!
Isso porque o Mestrado Profissional preparou a todos nós, mestrandos, para abrirmos a mente para uma série de conhecimentos em mediação e humanização. Tudo isso foi de suma importância para chegarmos a essa interdisciplinaridade entre o direito e a arte. Então, muito obrigada, Unifor, por ter esse Mestrado em seus quadros.
Muito obrigada também ao professor e coordenador Gustavo Raposo, que foi incrível no surgimento do Programa Justiça com Arte, porque comentei com ele sobre a ideia e na mesma hora disse “Olha, isso tem tudo a ver com o que a gente está tratando aqui nesse Mestrado. É isso mesmo!”. E foi assim que surgiu.