seg, 27 maio 2024 14:52
Entrevista Nota 10: Michele Camelo e a perspectiva sobre gênero no Tribunal do Júri
A defensora pública fala da importância do Tribunal do Júri para a democracia, especialmente no âmbito de gênero, além de comentar o caso da mulher absolvida por esgotamento mental pela tentativa de homicídio ao ex-marido
Segundo o estudo “Esgotadas”, da ONG da Think Olga, problemas financeiros, carga de trabalho excessiva, discriminação de gênero e sobrecarga doméstica contribuem para o adoecimento mental das mulheres no Brasil: cerca de 45% delas lidam com ansiedade, depressão ou outros transtornos mentais. Muitas ainda vivem em situações de violência e desamparo social e emocional enquanto são as principais responsáveis pelos filhos e outros membros da família.
Nessas situações, não é incomum a reação de uma mulher a tais pressões acontecer de maneira instintiva ou desmedida – e até agressiva –, por vezes extravasando a condição de sofrimento psicológico em que vive. Um caso similar chegou ao Tribunal do Júri em março, aqui no Ceará, quando uma cidadã foi absolvida da acusação de tentativa de homicídio contra o ex-marido, após a defesa apresentar as teses de esgotamento emocional e sobrecarga mental feminina.
A defensora pública Michele Cândido Camelo, titular da 13ª Defensoria Pública de Família e docente convidada da Especialização em Direito e Processo de Famílias e Sucessões da Universidade de Fortaleza, atuou como assistente de defesa da acusada no processo. Ela conta que a autora do incidente já vivia há anos em situação de violência doméstica, além de trabalhar e ser responsável pelo cuidado com a casa e o filho. O grande desafio, diz, era realizar a defesa de uma mulher que não merecia ser penalizada.
“Não só falamos de esgotamento da mulher quando pensamos numa relação familiar, em que se discute pensão alimentícia, partilha de bens, divórcio, dissolução de união estável. Quando falamos de esgotamento da mulher, de economia do cuidado, de trabalho não remunerado, estamos falando de algo que transcende, inclusive, o direito: ele está na economia, no direito de família, no direito criminal. E, por isso, deve ser levado ao Tribunal do Júri e considerado na análise daquela situação”, explica.
No último dia 23 de maio, Michele e o defensor público Eduardo Villaça estiveram na Unifor para ministrar a palestra “Tribunal do Júri: processo, vivência e atuação com perspectiva de gênero”. Promovido pelo curso de Direito, o evento teve como intuito apresentar uma profunda análise aos alunos e demais participantes sobre a atuação no Tribunal do Júri pela ótica de gênero.
Egressa da Universidade de Fortaleza, a defensora pública é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Sua atuação é centrada nas temáticas de direitos humanos, direitos das famílias, direitos das mulheres e gênero.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, Michele fala sobre a importância do Tribunal do Júri para a democracia, especialmente no que tange o assunto de gênero, além de comentar o caso da mulher absolvida por esgotamento mental pela tentativa de homicídio ao ex-companheiro.
Confira na íntegra a seguir.
Entrevista Nota 10 — Poderia explicar brevemente como funciona o Tribunal do Júri? Qual a importância dele para a manutenção da democracia pelo mundo, em especial no Brasil?
Michele Camelo — O Tribunal do Júri tem uma formação diferenciada: são pessoas do povo que julgam seus pares. Não são juízes concursados ou togados que julgam, como geralmente temos a ideia que o façam, são pessoas do povo. E quando pensamos nessa possibilidade de pessoas do povo especificamente para crimes dolosos contra a vida (ou seja, crimes intencionais contra a vida de alguém), é muito simbólico que tenhamos então pessoas comuns a julgar. Isso significa que qualquer pessoa pode matar alguém. Uma violenta emoção, uma legítima defesa, algo pode acontecer que provoque em alguém essa reação, com esse crime que é tão bárbaro e encerra a vida de outra.
Trazer as pessoas do povo para o Tribunal do Júri poderia ser pensado de ser algo negativo, porque são pessoas que não estudaram teoricamente para isso. Na realidade, isso se mostra como algo muito positivo, exatamente porque é algo que qualquer pessoa pode cometer. Quando trazemos isso para um debate com pessoas, com jurados que estão lá – como o próprio nome diz, juramentados em julgar com a verdade, com o que foi colocado ali –, nós trazemos então a justiça para o povo. Isso também é democracia. Existem outros temas que exigem técnica mais apurada, falo aqui do Direito de Família, do Direito do Consumidor. Mas especificamente para isso, o legislador e o constituinte entenderam que caberia ao Tribunal do Júri.
Entrevista Nota 10 — No âmbito jurídico, diversas variáveis e contextos precisam ser levados em consideração na hora de montar acusação, defesa ou veredito. Como a questão de gênero pode - e deve - influenciar o trabalho e os pareceres dos juristas envolvidos em todo o processo? E no Tribunal do Júri, esse assunto também é considerado e trazido à prática?
Michele Camelo — Algo curioso do Tribunal do Júri é o fato de serem trazidas situações da vida real. Exatamente por isso que nós temos então juízes leigos, pessoas do povo que julgam. E quando vamos comentar um caso de uma mulher acusada de tentativa de homicídio contra o ex-companheiro, nós estamos tratando de uma de uma situação real. Qual é a situação real? No caso da autora [do delito], ela estava esgotada, não era uma mulher louca, não era uma mulher histérica, uma mulher descompensada. Era uma mulher esgotada diante de uma situação de violência doméstica, diante de uma situação de esgotamento sem rede de apoio — como muitas mulheres em nosso cotidiano, que participaram, inclusive, do próprio plenário.
Quando nós trazemos isso para um Plenário do Júri, na realidade, trazemos a vida da pessoa que praticou um fato e que foi levada ao Tribunal Popular. E essa pessoa, essa vida dela e tudo que envolve o acontecimento [em questão] devem ser levados em consideração. É nessa perspectiva que o Tribunal do Júri é diferenciado.
Não só falamos de esgotamento da mulher quando pensamos numa relação familiar, em que se discute pensão alimentícia, partilha de bens, divórcio, dissolução de união estável. Quando falamos de esgotamento da mulher, de economia do cuidado, de trabalho não remunerado, estamos falando de algo que transcende, inclusive, o direito: ele está na economia, no direito de família, no direito criminal. E, por isso, deve ser levado ao Tribunal do Júri e considerado na análise daquela situação.
Entrevista Nota 10 — Em março deste ano, você participou como assistente de defesa no Tribunal do Júri que absolveu uma mulher da acusação de tentativa de homicídio contra seu ex-marido. O esgotamento emocional e a sobrecarga mental feminina, junto a outros eventos relacionados, foram apresentados como fatores que desencadearam o incidente. Qual a importância desses contextos para a construção da defesa nesse caso? O que considera ter sido o principal desafio nesse julgamento?
Michele Camelo — É muito interessante a sua pergunta. Participamos do Júri eu e Eduardo Vilaça, meu marido. E no meu cotidiano, enquanto defensora de família e estudiosa das questões de gênero e também do esgotamento da mulher — porque não tem como dissociar esse tema —, trago para as discussões essa realidade, que não é a minha, mas é a realidade de muitas mulheres. Nove em cada dez mulheres têm alguma questão de saúde mental. Isso é um dado extremamente relevante. Por que essas mulheres estão esgotadas? O que tem levado a esse esgotamento?
Mulheres [que chegam] nas defensorias de família dizem “Eu não aguento mais! Eu preciso que o genitor participe da vida dessa criança, que assuma as responsabilidade, que possa levar nos médicos, que possa me acompanhar, que possa buscar no colégio ensinar o dever de casa, que possa ficar acordado tarde da noite até que a febre baixe”. Essas mulheres estão cansadas. E isso, especialmente no pós-pandemia, passou a existir de uma forma muito constante, de não ter mais uma realidade em que as mulheres toleram, aceitam e recebam o encargo de cuidado sem questionar.
Esse tema, o Eduardo ia fazer um Júri, que aconteceu em março, e ele me disse “Michele, o meu local de fala não permite que a minha defesa seja tão plena quanto a que essa mulher merece ter. Queria que você participasse desse Júri porque eu acho que essa fala, essa realidade precisa ser colocada em plenário e considerada. E acho que a sua capacidade de falar melhor que a minha por tudo que você vivencia e estuda”.
A partir dessa colocação, eu estudei o processo junto e, quando fomos conversar com a autora do fato, era nítido não só por ela, mas pelo próprio depoimento da suposta vítima. Vamos chamá-lo de “suposta” porque é até injusto considerá-lo como vítima quando, na realidade, nós temos uma situação de anos de violência doméstica [contra a acusada].
O grande desafio para essa situação era exatamente realizar a defesa de uma mulher que não merecia ser penalizada. E quando você tem uma realidade em que você precisa defender alguém que está sendo acusado de tentativa de homicídio e que poderia sair do plenário do júri presa, era preciso que essa defesa fosse extremamente cuidadosa. E o direito penal e criminal não bastariam para a defesa dessa mulher. Daí a necessidade de trazer ao Plenário do Júri a tese do esgotamento da mulher e a tese de gênero, para que esse julgamento com a perspectiva de gênero [pudesse] ultrapassar as demandas familiaristas, que tratam exclusivamente sobre as relações familiares.
Entrevista Nota 10 — No dia 23 de maio, você participou da palestra “Tribunal do Júri: processo, vivência e atuação com perspectiva de gênero”, promovida pelo curso de Direito da Unifor, junto ao defensor público Eduardo Villaça, que também é seu marido. Qual a importância de trazer esse debate para o ambiente acadêmico? De que forma essa troca pode construir uma classe profissional mais preparada, assim como aprofundar os estudos científicos nessa área jurídica?
Michele Camelo — É uma enorme satisfação discutir esse tema na Unifor, onde fiz meu curso de Direito, onde me iniciei cientificamente na Semana de Iniciação à Pesquisa, no Serviço de Assessoria Jurídica Popular (SAJU) e nos projetos de iniciação à docência.
É muito importante que esse tema seja discutido. Durante muito tempo se teve como uma realidade, quase que natural, que a mulher saberia o dever de cuidado. Ainda existe essa tendência de se encarar a mulher como uma pessoa cuidadora, a que deve exercer os cuidados. E quando trazemos essa perspectiva de gênero para o Tribunal do Júri e para uma plateia de estudantes de Direito, trazemos uma nova realidade: não se tolera, não se aceita mais que as mulheres sejam colocadas nesse papel.
Nós temos julgamentos que são muito interessantes, antigos, mas que poderiam ser até atuais. Por exemplo, em uma situação de infanticídio, uma mulher teve a pena aumentada em razão do dever de cuidado enquanto o marido, que também cometeu o infanticídio, não teve esse aumento da pena. Por quê? Porque à mulher caberia o dever de cuidado.
É para que situações como essa não aconteçam que precisamos discutir os papéis de gênero e dizer que esses papéis não são definidos. Uma mulher não nasceu para cuidar. Um homem não nasceu para cuidar. As pessoas nasceram para cuidar e serem cuidadas. Por isso que a Constituição diz que cabe aos pais (ao pai, à mãe, aos genitores) cuidarem das crianças e adolescentes, enquanto assim o forem, e serem cuidados quando na velhice.
Então, esse dever de cuidado necessariamente precisa passar por um lugar de discussão. E é justamente essa nova geração de operadores do Direito que está sendo formada e que vai vir para o mercado de trabalho trazendo essa nova perspectiva, de algo que já está ultrapassado e que não se tolera mais: que as mulheres sejam colocadas como aquelas cuidadoras enquanto que os homens são aqueles a serem cuidados.
Entrevista Nota 10 — Graduada em 2002, você é egressa do curso de Direito da Universidade de Fortaleza. Como foi sua experiência enquanto aluna? Qual a contribuição que a Unifor teve em sua formação tanto pessoal quanto profissional?
Michele Camelo — Eu fiz bacharelado em Direito na Unifor, e foi muito importante para minha formação enquanto defensora pública que sou hoje, enquanto operadora do direito, enquanto alguém que tem um olhar diferenciado para as pessoas também, porque é preciso ter sensibilidade. Quando trabalhamos com direito, qualquer que seja, não podemos falar só de processos, falamos de vida. E isso foi algo que foi construído também na minha graduação.
Na minha graduação, participei da fundação do Serviço de Assessoria Jurídica Popular (SAJU); participei do projeto Cidadania Ativa, com a professora Ana Paula; fui monitora de Processo Civil, com o professor José Maria, que foi meu grande incentivador para que eu fizesse concurso público. Fui premiada na primeira Semana de Iniciação à Docência da Unifor por um projeto desenvolvido enquanto ainda era monitora.
Também participei, acho, de todas ou quase todas Semanas de Iniciação à Pesquisa, o que contou como publicação para que, quando fosse fazer o meu Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade, eu também tivesse esses títulos de publicações, que foram ainda da minha graduação. E conheci a Defensoria também na Unifor, pela parceria que a Defensoria Pública tem com a Universidade. Na época, a docente Amélia Rocha foi minha professora, me mostrou esse lado da assistência jurídica necessária.
Então, a Unifor foi muito importante e fundamental para mim. Anos depois voltei como professora da Especialização em Direito e Processo de Família e de Sucessões, um curso fantástico que traz a vivência e profissionais excelentes. Nele, conseguimos construir uma renovação desse pensamento de gênero, pensamento de novas famílias e de construções que são necessárias a quem trabalha com essa temática. Digo que a Unifor me abraçou e eu abracei a Unifor. Daí a importância também para mim, pessoalmente, de estar vivendo esse momento.
Entrevista Nota 10 — Você retornou a sua alma mater como professora convidada para ministrar a disciplina de Gênero na Especialização em Direito e Processo de Família e de Sucessões. Como surgiu esse convite? Para você, como é estar de volta, agora no papel de responsável pela formação de novos profissionais?
Michele Camelo — Para mim foi uma satisfação muito grande ter sido convidada há mais de dez anos pela Olívia Pinto, na época coordenadora da Especialização. Poder voltar como professora para minha Universidade, onde fiz meu curso de Direito, foi muito importante para mim. Digo até que eu tenho uma relação de afeto com a Especialização, porque a minha caçula tem dez anos e, na época, meu marido levava ela para que eu pudesse amamentá-la entre as aulas. Então trago isso com muita com muita alegria. E esse momento, de participar desse debate junto aos estudantes de Direito e poder levar um tema que é tão importante e precisa ser discutido, também é algo que me deixa muito feliz. Entendo como um privilégio muito grande fazer parte desse momento de formação.