Entrevista Nota 10: Tainah Simões e o debate jurídico sobre a união homoafetiva no Brasil

seg, 20 novembro 2023 14:33

Entrevista Nota 10: Tainah Simões e o debate jurídico sobre a união homoafetiva no Brasil

Pós-doutoranda em Direito Constitucional, a advogada fala das questões jurídicas que cercam o debate sobre o direito à união estável entre pessoas do mesmo sexo no país


Mestre e doutora em Direito, Tainah já foi professora da Unifor de 2013 a 2023 (Foto: Arquivo pessoal)
Mestre e doutora em Direito, Tainah já foi professora da Unifor de 2013 a 2023 (Foto: Arquivo pessoal)

A luta pela igualdade faz parte do cotidiano de diversos grupos minoritários no Brasil, especialmente de pessoas LGBTQIAPN+. Mesmo com o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo legalmente a união estável homoafetiva em 2011, a garantia desse direito alcançado tem passado por turbulências políticas.

Em outubro, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 580/07, que proíbe o casamento homoafetivo e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Escrito pelo deputado Pastor Eurico (PL-PE), o texto segue para análise de outras comissões e, se aprovado, irá para o Senado.

“Este projeto de lei, ou qualquer outro que signifique retrocesso de direitos ou a exclusão de grupos ao acesso a direitos, são flagrantemente inconstitucionais”, declara a advogada Tainah Simões, pesquisadora em Direito Constitucional e Direitos Humanos. Ações como essa, segundo ela, violam princípios fundamentais previstos em nossa Constituição.

Na última quinta-feira, a jurista esteve na Universidade de Fortaleza — da Fundação Edson Queiroz — para debater sobre o assunto na palestra “A proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva dos Controles de Convencionalidade e Constitucionalidade”. 

Tainah é pós-doutoranda em Direito Constitucional pela Unifor, instituição na qual já foi professora. Possui doutorado e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com realização de pesquisa doutoral internacional (bolsa CAPES/PDSE) na Aix-Marseille Université, na França. 

É docente dos cursos de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Centro Universitário Serra dos Órgãos (UNIFESO), além de ser professora supervisora do Field Project “Observatório das Mulheres Parlamentares” na FGV. Na Entrevista Nota 10 desta semana, a advogada fala sobre a situação jurídica da união homoafetiva no Brasil.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Professora, o que difere os conceitos de “união estável” e de “casamento” segundo a justiça brasileira? Como o reconhecimento formal de uma união ou casamento afeta na prática, sob a ótica jurídica perante o Estado, o acesso dos cidadãos a seus direitos?

Tainah Simões — Embora ambas sejam consideradas entidades familiares, há diferenças. Em primeiro lugar, na união não há alteração do estado civil. E não precisa de formalidade, de modo que acontece quando duas pessoas vivem juntas com intenção de ser uma família. A formalização perante o cartório é possível, porém não obrigatória. Já no casamento, há a exigência da formalidade.

Desde a decisão do STF de 2011 (quanto à união estável) e do posterior reconhecimento, pelo CNJ, do casamento, a união entre casais homoafetivos têm sua entidade familiar reconhecida, tanto na união estável quanto no casamento civil. Isso implica no reconhecimento de direitos relativos à comunhão de bens, herança, pensão etc. Além disso, é importante mencionar que isso significa o reconhecimento pelo Estado e perante a sociedade da relação entre duas pessoas que, legitimamente, querem constituir família.

Entrevista Nota 10 — Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou legal a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que proíbe cartórios de se negarem a realizar casamentos homoafetivos. Qual poderia ter sido o passo seguinte mais lógico ou importante para o avanço dessa questão no país?

Tainah Simões — O passo seguinte mais lógico seria a criação de uma lei que garantisse de forma permanente esses direitos e mais políticas públicas e normas que atendessem aos interesses da população LGBTQIAPN+. Avanços aconteceram, mas praticamente apenas por ação do Poder Judiciário.

O Congresso Nacional, costumeiramente com formação bastante conservadora, pouco tem feito a respeito da proteção dos direitos fundamentais deste grupo. A criminalização da LGBTfobia nunca ocorreu por lei, por exemplo, embora o Brasil seja o país que mais mata a população LGBTQIAPN+.

O ideal é que tivéssemos representantes atentos a esta realidade, pois apenas assim haveria não somente a criação de legislação, mas de políticas públicas de interesse deste grupo social específico. Não adianta a Constituição assegurar em seu texto a igualdade se o Estado não se empenhar em garantir a segurança de sua efetivação.

Entrevista Nota 10 — No início de outubro, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo e a união estável entre pessoas do mesmo sexo. O texto sugere que, para fins patrimoniais, as partes da relação sejam tratadas enquanto “contratantes”, sendo possível o uso dos conceitos de “casamento” e “união estável” apenas para relações heterossexuais. No que essa decisão implica a níveis jurídicos, sociais e políticos para a população LGBTQIAPN+?

Tainah Simões — Em termos jurídicos, para começar, a negação do direito à igualdade. Se “todos são iguais perante a lei”, por que somente alguns teriam direito de contrair casamento? Seria também negação da liberdade de ser, da autonomia da vontade. Além disso, a impossibilidade de contrair casamento geraria uma série de outros impedimentos, como os relacionados à herança, pensão, adoção etc. Não haveria esses direitos entre os “contratantes”. Um grande retrocesso jurídico, social e político. É muito violento negar a alguém o direito de ser quem se é. Estabelecer apenas um padrão social, hierarquizar seres humanos a partir de uma única lógica sobre o que é certo e o que é errado, tudo isso implica na negação da própria dignidade do outro.

Entrevista Nota 10 — Diversas partes da população e lideranças políticas vêm considerando a aprovação do PL como um retrocesso para a sociedade civil em razão da remoção de direitos que já haviam sido conquistados. Movimentos como o desse projeto de lei são considerados constitucionais? Como os direitos humanos ficam nessa história?

Tainah Simões — Este projeto de lei, ou qualquer outro que signifique retrocesso de direitos ou a exclusão de grupos ao acesso a direitos, são flagrantemente inconstitucionais. Violam princípios fundamentais previstos em nossa constituição, como liberdade, igualdade, honra e dignidade humana. Violam também diversos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Nosso sistema constitucional não admite retrocessos desta natureza.

Entrevista Nota 10 — Você acredita que o PL seguirá adiante? O que seria necessário para mudarmos o panorama da busca por direitos para a população LGBTQIAPN+ no Brasil?

Tainah Simões — Dificilmente seguirá adiante a ponto de se tornar uma lei efetivamente. Foi aprovado em apenas uma comissão, e o processo legislativo é longo e cheio de etapas. O projeto ainda pode ser arquivado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, pelo plenário da Câmara, pela CCJ do Senado, pelo plenário do Senado e ainda pode sofrer o veto do Presidente da República. Somente passando pela aprovação em todas as etapas este projeto passaria a ser uma lei. A título hipotético, se virasse lei, certamente passaria pelo controle de constitucionalidade feito pelo Poder Judiciário, em especial pelo STF. Então, me parece muito improvável que seja aprovado.

Em relação ao panorama, creio que somente a partir de muito diálogo social, projetos no sentido de promover a conscientização a respeito dos direitos humanos e da dignidade humana, educação política e ações afirmativas será possível vislumbrar mudanças que garantam a equidade e o respeito aos direitos da população LGBTQIAPN+.