Entrevista Nota 10: Vani Kenski e os atuais desafios da educação a distância no Brasil

seg, 9 dezembro 2024 11:59

Entrevista Nota 10: Vani Kenski e os atuais desafios da educação a distância no Brasil

Diretora de Pesquisa da Associação Brasileira de Educação a Distância fala sobre a evolução dessa modalidade de ensino no país


Mestre e doutora em Educação, Vani ministrou uma palestra no evento Dia EAD, da Unifor, onde falou sobre os desafios e benefícios da modalidade (Foto: Divulgação)
Mestre e doutora em Educação, Vani ministrou uma palestra no evento Dia EAD, da Unifor, onde falou sobre os desafios e benefícios da modalidade (Foto: Divulgação)

Nos últimos anos, a educação a distância (EAD) tem se consolidado como uma modalidade fundamental no cenário educacional brasileiro, especialmente no contexto da graduação. Em 2022, por exemplo, o número de ingressantes em cursos EAD ultrapassou os de cursos presenciais, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Essa tendência reflete uma mudança significativa nos hábitos e nas necessidades dos estudantes, impulsionada por fatores como o avanço tecnológico, a ampliação do acesso à internet e a flexibilidade proporcionada pela modalidade.

Para Vani Kenski, ex-vice-presidenta e atual diretora de Pesquisa da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), esse crescimento reflete alguns aspectos importantes da atual cultura nacional como a ampliação do número de celulares em uso e o sonho da escolarização superior e do diploma para ascensão social e profissional.

“Além disso, é clara a necessidade de contínua atualização de todos os cidadãos em decorrência das transformações tecnológicas, sociais e culturais ocasionadas pelos ágeis e contínuos avanços digitais”, pontua. Apesar disso, o cenário da EAD no país precisa enfrentar diversas questões para seguir avançando e formando pessoas.

No fim de novembro, ela esteve na Universidade de Fortaleza para o “Dia EAD”, onde ministrou a palestra “Desafios e benefícios de estudar na modalidade EAD”. Promovido pela Educação a Distância (EaD Unifor), o evento destacou o impacto e a relevância da modalidade no mercado atual, tendo contado com a participação de docentes, tutores e alunos.

Formada e licenciada em Pedagogia e Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Vani é mestre e doutora em Educação pela Universidade de Brasília e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), respectivamente. Já atuou como docente na Universidade de São Paulo (USP) e na UNB, tendo sido diretora da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE) e do SITE Educacional Ltda.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, Vani fala sobre a evolução da EaD e os desafios dessa modalidade de ensino no Brasil. 

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — Como você vê a evolução da educação à distância ao longo do tempo, especialmente nos últimos anos? Quais transformações foram fundamentais para o avanço da EaD no Brasil? 

Vani Kenski — A EaD no Brasil sempre foi vista culturalmente de forma supletiva, para formação profissional abreviada de técnicos (Instituto Monitor, por exemplo) e também para a alfabetização de adultos por meio de iniciativas do governo ou de instituições privadas (projeto Minerva e outros).

Iniciativas em EaD acompanharam a popularização das mídias mais utilizadas pelo povo em cada época, como o material impresso (início do século XX) e o rádio (a partir de 1920). Em meados do século passado foi frequente o uso da televisão para  várias ações pontuais de formação a distância. Outros recursos foram utilizados de forma complementar a essas iniciativas, como textos impressos, fitas de áudio, disquetes etc.    

Esta ação paralela nunca foi considerada nos cursos de formação de professores (Pedagogia, Licenciaturas). Ao contrário dos processos desenvolvidos em muitos países — Open, na Inglaterra; CNED, na França; UAB, em Portugal, por exemplo —,  o ensino a distância no Brasil sempre foi desprezado e ignorado na esfera educacional e nas ações governamentais. Uma discrepância dado os índices endêmicos de analfabetismo do país e a dificuldade de acesso à educação para os que vivem em regiões mais remotas, entre outros educacionalmente desassistidos. 

A partir dos anos 1990 (no Brasil, em 1995), com as possibilidades oferecidas pela internet, a EaD ganhou novos impulsos em todo o mundo. No Brasil, foi incorporada às formações realizadas sobretudo nas empresas, em consequência da rápida transformação tecnológica ocasionada pelas tecnologias digitais, em permanente transformação.  

O uso mais intensivo da internet e das redes possibilitaram formas diferenciadas de atualização profissional, sem deslocamentos dos trabalhadores para aprender. Isto foi revolucionário e possibilitou o desenvolvimento de formações atualizadas que atendessem às necessidades das empresas e de seus funcionários de todos os níveis, a qualquer tempo e em qualquer lugar. 

O crescimento da EaD como opção de formação educacional regular foi orientado a partir da criação da Secretaria de Educação a Distância no Ministério da Educação, como era previsto na LDB/1996. Foi assim oficializada e garantida a oferta  de EaD pelas instituições educacionais, em especial para a formação de estudantes no ensino superior, de acordo com normas e procedimentos específicos, regulamentados pelos órgãos oficiais do governo.  

A abertura legal para o surgimento de cursos superiores a distância e as muitas funcionalidades digitais, como os LMS (ambientes virtuais de ensino), foram importantes para que as instituições públicas e privadas pudessem desenvolver formações de graduação e pós-graduação em diversas áreas do conhecimento, garantindo o acesso à Educação a todos os brasileiros, como é previsto na Constituição Brasileira de 1988 e na LDB de 1996. 

Atendendo a uma demanda reprimida de escolarização, a EaD garante o oferecimento de formações diferenciadas em todo o país. Na atualidade, o número de estudantes em cursos a distância é muito grande. Segundo dados do próprio Inep/MEC apresentados pelo Censo da Educação Superior 2021, em 10 anos, o número de ingressantes em cursos de graduação EaD aumentou 474%. Isso corresponde a 62,8% do total de ingressantes em cursos superiores no país. 

Este crescimento reflete alguns aspectos importantes da atual cultura nacional como a ampliação do número de celulares em uso e o sonho da escolarização superior e do diploma para ascensão social e profissional. Além disso, é clara a necessidade de contínua atualização de todos os cidadãos, em decorrência das transformações tecnológicas, sociais e culturais ocasionadas pelos ágeis e contínuos avanços digitais. 

Entrevista Nota 10 — Existem instituições brasileiras que se destacam pelos seus cursos oferecidos em EaD? 

Vani Kenski — Temos excelentes cursos em EaD desenvolvidos pelas universidades federais e pelas IES públicas estaduais. Entre as estaduais, muitas dessas se destacam pela capacidade de inclusão de grupos (como indígenas, quilombolas, entre outros) e adequação dos seus cursos às realidades locais. Este é o caso, por exemplo, do trabalho realizado pela UEMA (Maranhão) e pela UEM (Maringá/Paraná), entre outras. 

Um grande exemplo de IES é a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), que é bem jovem, com pouco mais de 10 anos, e oferece cursos de graduação e pós-graduação exclusivamente a distância (modelados de acordo com a legislação em vigor, com polos etc). Ela é, atualmente (Censo Inep/2023), a maior universidade em número de ingressantes na graduação, tanto entre as IES presenciais quanto virtuais. Entre as federais, destaco os projetos da UFSCar para oferecimento de diferenciados cursos de graduação e pós-graduação a distância.

Ressalto, no entanto, que o grande destaque no oferecimento de EaD no Brasil se dá graças às universidades privadas e sua capacidade de formação de estudantes alocados nos mais distintos espaços do território nacional. 

Entrevista Nota 10 — Em termos de adoção e qualidade da educação a distância, como o Brasil se compara com outros países? 

Vani Kenski — É difícil comparar. A EaD não é prioridade para o governo brasileiro. Além das excessivas regulamentações governamentais, sempre em revisão, para o licenciamento de cursos a distância pelas instituições de ensino superior (IES), não existe um modelo central de qualidade em EaD. Ao contrário dos demais países, não temos nenhuma universidade nacional essencialmente a distância, que poderia orientar para um modelo brasileiro de formação a distância.

Entrevista Nota 10 — Existem práticas internacionais que poderíamos adotar para melhorar nosso sistema?

Vani Kenski — Sim, com certeza. A primeira é a formação de docentes e técnicos (equipes pedagógicas, designers instrucionais e equipes técnicas) orientada para atuação em cursos a distância mediados pelas mais inovadoras tecnologias e metodologias. Outra prática é a aceitação de paridade e mobilidade dos estudantes entre os cursos presenciais e à distância da mesma área e na mesma instituição (ou em instituições parceiras). A terceira seria a perspectiva de atuação internacional, integrando sistemas com outras universidades estrangeiras e garantindo assim uma formação atual, com o objetivo de preparar os alunos para se tornarem cidadãos globais que podem ser bem-sucedidos em qualquer lugar do mundo.  

Entrevista Nota 10 — Como ex-vice-presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED), de que maneira você enxerga os critérios atuais de avaliação e credenciamento das instituições de ensino para essa modalidade?  

Vani Kenski — Neste instante, o MEC está gestando um novo referencial de qualidade para EaD que apresentará alterações significativas no funcionamento e na nomenclatura da área. O propósito é mais de judicializar, impor normas e padrões distintos que possam ser observados pelas instituições e mais facilmente identificados pelos avaliadores do governo de modo a frear o crescimento desordenado da EaD no país. Algumas normas, ainda em discussão, são rígidas (como a ênfase na presença física em salas de aula em metade das ações de ensino em cursos de todas as áreas) e podem criar impasses e ameaças para o funcionamento em todas as formações na modalidade. 

A abrangência dos novos referenciais se dá até na preocupação, mais do que semântica, para a modificação do conceito de EaD. A previsão é mudança, neste novo referencial,  de “modalidade EaD” para “formato EaD” e a inclusão de mais um formato, o semipresencial. Ainda não está clara qual a diferença entre o que seria um curso a distância e um semipresencial, uma vez que de ambos são exigidas a metade das atividades (aulas) em espaços físicos presenciais.  

Ainda não é possível afirmar, com certeza, o que resultará e será consolidado com este referencial para o oferecimento da EaD nos próximos anos. 

Entrevista Nota 10 — A Unifor já contava com o suporte de tecnologias educacionais antes de lançar suas graduações EAD, em 2021. De lá pra cá, a instituição segue se dedicando a evoluir e melhorar essa modalidade. Qual a sua visão sobre a EAD Unifor?   

Vani Kenski — Vocês estão seguindo no melhor caminho e, por isso, se destacam entre as melhores universidades privadas do país. Tenho certeza de que a EaD da Unifor é de excelente qualidade, como tudo o que vocês desenvolvem. Os seus estudantes são privilegiados em poder usufruir de formações tão bem desenvolvidas. Parabéns.