Entrevista Nota 10: Gustavo Tepedino e a importância do Direito Civil na democracia

seg, 5 setembro 2022 11:03

Entrevista Nota 10: Gustavo Tepedino e a importância do Direito Civil na democracia

O advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), que ministrou a palestra de abertura do IBDCivil 2022 sobre os 20 anos do Código Civil, fala à Entrevista Nota 10 sobre a influência jurídica do tema no Brasil


Gustavo Tepedino é docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e esteve presente na Universidade de Fortaleza em agosto (Fotos: Arquivo pessoal)
Gustavo Tepedino é docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e esteve presente na Universidade de Fortaleza em agosto (Fotos: Arquivo pessoal)

O advogado e professor de Direito Civil Gustavo Tepedino ministrou a palestra de abertura do VIII Congresso de Direito Civil, realizado na Universidade de Fortaleza – instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz. Organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), o evento aconteceu nos dias 25 e 26 de agosto e teve como tema os “20 anos do Código Civil na Legalidade Constitucional”.

Para o docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e presidente do IBDCivil, diversas transformações sociais suscitaram “um verdadeiro renascimento do Direito Civil”. Dentre elas, Gustavo destaca o advento das novas tecnologias, a reconstrução dos modelos de família, a ampliação da proteção das vítimas de danos e o agigantamento da circulação de dados pessoais.

Tepedino é doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália) e professor visitante das Universidades de Molise (Itália); São Francisco (Califórnia, EUA) e Poitiers (França). Também é pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Privado Comparado e Internacional (Hamburgo, na Alemanha) e membro de renomadas associações da área do direito.

À Entrevista Nota 10, o professor cita ainda o fortalecimento da capacidade organizacional e reivindicatória das comunidades como uma das contribuições do Direito Civil para a democracia. Ele ainda fala sobre o congresso e destaca a construção interpretativa do Código Civil ao longo de duas décadas, sempre à luz da Constituição de 1988.

Confira a entrevista na íntegra

Entrevista Nota 10 – Quais os principais desafios do Direito Civil no Brasil na atualidade?

Gustavo Tepedino – Vivemos em uma sociedade cada vez mais complexa, com aumento exponencial das demandas sociais e a ampliação vertiginosa da distância entre, de um lado, quem dispõe de informação, de educação, do acesso às novas tecnologias; e, de outro, aqueles que estão à margem desse processo.

Em tal contexto, as relações privadas tornam-se palco e espelho dessa realidade social, com suas diferenças, inconformismos e idiossincrasias que se acentuam na vida cotidiana, campo de atuação do direito civil.

Ao Direito Civil cabe o enorme desafio de reduzir e compor conflitos de interesse a despeito de tantas desigualdades e vulnerabilidades: na família, nas relações contratuais, nas relações de consumo, nas relações empresariais e proprietárias e assim por diante.

Entrevista Nota 10 – Como o direito civil tem contribuído para o fortalecimento da democracia no Brasil? Em que ele pode contribuir ainda mais?

Gustavo Tepedino – O fortalecimento da capacidade organizacional e reivindicatória das comunidades intermediárias, como família e empresa, para a construção de relações privadas em cenário de  igualdade substancial – e não apenas igualdade formal –, onde a solidariedade e a justiça distributiva sejam pilares da convivência social, trata-se de projeto extraordinário de transformação social de dentro (dos ambientes privados) para fora (espraiando-se para toda a sociedade). A partir dos próprios atores da vida democrática contribui-se para o estabelecimento de relações igualitárias. Eis aí o longo e árduo processo que, a meu ver, está em curso com a igualdade de gênero, o empoderamento da mulher, do consumidor, das pessoas com deficiência, da pessoa comum.

Entrevista Nota 10 – A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entrou em vigor no ano passado. Como o senhor vê a aplicação da lei e a sua receptividade entre os usuários da internet?

Gustavo Tepedino – Trata-se de lei relevantíssima, cuja plena recepção depende, também, de uma mudança cultural, para que se possa valorizar o consentimento informado das pessoas nessa miríade de dados que nos são solicitados a cada dia. Vejo de forma positiva e otimista a entrada em vigor da LGPD e acredito que o Brasil, nesse particular, tem instrumentos jurídicos eficazes, a serem incorporados paulatinamente na vida social.

Entrevista Nota 10 – Na sua opinião, qual a importância do 8º Congresso do IBDCivil de 2022?

Gustavo Tepedino – O VIII Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil, organizado juntamente com a Universidade de Fortaleza, dedicado aos “20 anos do Código Civil na legalidade constitucional”, constitui-se em um dos eventos jurídicos mais relevantes no cenário brasileiro.

Além dos instigantes debates a serem conduzidos por alguns dos mais renomados juristas em atividade, trata-se do primeiro grande evento presencial de Direito Civil realizado após o desafiador período da pandemia da Covid19, no qual quase tudo ocorreu de modo virtual.

Por outro lado, a união, já tradicional, com essa grande instituição universitária, a Unifor, permitiu enorme sinergia na seleção de temas e de professores de todo o Brasil e de Portugal, unindo nossas diversas regiões representadas por suas Escolas de pensamento, grupos de pesquisa e universidades.

Entrevista Nota 10 – Quais foram os principais temas tratados no Congresso e como estes se conectam com o cenário atual?

Gustavo Tepedino – Os debates foram extremamente ricos, abrangendo os mais variados e atuais assuntos da agenda do direito privado. Foram discutidos temas clássicos, como negócio jurídico, com suas transformações decorrentes das novas tecnologias; os novos princípios contratuais, com especial destaque à boa-fé objetiva; a revisão contratual no contexto da pandemia; proteção de contratantes vulneráveis. Debateu-se também as titularidades e a controvertida regulação dos novos centros de interesse, como os bens digitais e criptoativos.

Em matéria de responsabilidade civil, reservou-se espaço à expansão do dano indenizável, teoria da perda da chance, e responsabilidade civil em ambiente cibernético.

Também passou em revista temas em voga em matéria de direito de família e sucessões, como o planejamento sucessório, relações familiares contemporâneas e a autodeterminação existencial, tomada de decisão apoiada e adoção coparental.

Em olhar atento às intensas transformações pelas quais a sociedade tem passado, debatemos ainda o direito fundamental à proteção de dados, as intercessões entre inteligência artificial e responsabilidade civil, e a utilização de métodos adequados de resolução de controvérsias, para além da via ao poder judiciário, como a arbitragem e a mediação.

Tudo isso teve por fio condutor a evolução do Código Civil, como norma viva construída pelo intérprete, ao longo dessas duas décadas, na legalidade constitucional.

Entrevista Nota 10 – O que os congressistas puderam experienciar na palestra de abertura, que foi proferida pelo senhor?

Gustavo Tepedino – Proferir a palestra de abertura de evento de tamanha importância foi um enorme desafio e alegria para mim, oportunidade em que pude tratar sobre “A construção interpretativa nos 20 anos do Código Civil na Legalidade Constitucional”.

Como se sabe, o Código de 2002 provocou enorme interesse pelo direito civil, estimulando cursos e atualizações de estudantes e profissionais, atraídos pela alteração legislativa. Por outro lado, deflagrou inevitável reflexão metodológica, por vezes intuitiva, por parte da magistratura.

Em tal cenário, a comunidade jurídica percebeu que o Código Civil não deveria representar ruptura em relação a modelos hermenêuticos estabelecidos ainda durante o período de vigência da codificação anterior e que tampouco poderia ser acolhido como a norma geral de direito privado. O Código Civil, como o vemos hoje, não se traduz na letra fria de enunciados normativos, mas se constitui no resultado de trabalho interpretativo intenso e ininterrupto, levado a cabo pela doutrina e pela jurisprudência, com base nos valores e princípios da Constituição da República de 1988, integrando-se assim ao ordenamento em sua complexidade e unidade.

É justamente nesse sentido que se colocou a palestra de abertura, buscando traçar os principais movimentos percebidos nesses vinte anos de construção hermenêutica, os quais foram esmiuçados ao longo das interessantíssimas palestras. Inaugurei os debates propondo reflexão sobre as principais transformações sociais que suscitaram verdadeiro renascimento do direito civil: o surgimento das novas tecnologias; a reconstrução dos modelos de família; a ampliação da proteção das vítimas de danos, hiperbolizados pela expansão do potencial danoso da atividade econômica; o agravamento das vulnerabilidades da pessoa humana em situações de assimetria econômica ou informacional; o agigantamento da circulação de dados pessoais; os novos desafios da tutela da personalidade decorrentes da maior exposição da pessoa humana e de suas demandas de autonomia existencial; o deslocamento do controle de riquezas de bens imóveis para ações de companhias e participações societárias.

Diante de tamanha transformação em marcha, o Congresso se mostrou alvissareiro. O Código Civil constitui-se em importante instrumento normativo para a interpretação e aplicação do Direito brasileiro. Não como processo lógico, mas axiológico, plasmado pelo Texto Constitucional. Nosso papel, levado a cabo no 8º Congresso, é insistir, portanto, em que a codificação, compreendida como parte integrante de um conjunto de núcleos legislativos, teve seus dispositivos incorporados, nessas duas décadas de lida interpretativa, por valores e princípios constitucionais, que asseguram a unidade do sistema na complexidade das fontes normativas, em permanente e persistente construção da legalidade constitucional.