Já ouviu falar de boas práticas digitais?

ter, 28 março 2023 11:04

Já ouviu falar de boas práticas digitais?

A internet e as redes sociais se tornaram inevitáveis e indispensáveis em nossa vida pessoal, acadêmica e profissional. Mas como usá-las com responsabilidade e evitar consequências jurídicas, emocionais e psicológicas indesejadas?


Ficarmos atentos ao que publicamos é uma forma de se manter responsável e evitar consequências indesejáveis no mundo de excessos que virou o universo digital (Imagem: Divulgação)
Ficarmos atentos ao que publicamos é uma forma de se manter responsável e evitar consequências indesejáveis no mundo de excessos que virou o universo digital (Imagem: Divulgação)

Mais de um milhão de pessoas acompanham diariamente a rotina de Giullia Giovanna Azevedo Albertini no TikTok. No Instagram, são mais 95 mil usuários antenados nas postagens sobre o universo gamer, a vida pessoal e a experiência universitária da estudante do 5º semestre de Medicina Veterinária da Universidade de Fortaleza (Unifor), instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz

A jovem de 22 anos começou a produzir conteúdo para a internet ainda na escola, em 2017. Imitava youtubers e usava a plataforma musical.ly, quando se surpreendeu com seus primeiros cinco mil seguidores. O aplicativo, que pode soar desconhecido para alguns, foi depois comprado pelo Tiktok e hoje é nada menos que a rede social do momento. 

“Sempre amei assistir gameplays e quis entrar nesse meio de fazer vídeos de jogos. Hoje em dia sou conhecida por testar coisas no [jogo] Minecraft. Mas, além disso, gosto de gravar memes sobre qualquer assunto, mostrar minha rotina na faculdade e um pouco mais da minha vida pessoal, que meus seguidores gostam bastante”, resume Giullia. 

Os vídeos que posta nas redes sociais são uma forma de deixar alguém feliz e distrair da realidade, dos problemas cotidianos. A estudante tem tido sucesso postando conteúdos leves. Mesmo assim, ela mantém os olhos e a cabeça bem atentos aos conteúdos que publica: uma forma de se manter responsável e evitar indesejáveis consequências jurídicas e emocionais no mundo de excessos que virou o universo digital.

Ser influencer e apostar no bom senso

Estamos conectados muitas horas por dia nas redes sociais e sentimos cada vez mais necessidade de expor o que estamos fazendo na vida pessoal, estudantil e profissional. Postamos para manter contatos, ganhar seguidores, influenciar pessoas e até para construir relevância no mercado de trabalho. Publicamos muito, o tempo todo.

Avante na nossa liberdade de expressão, mas com responsabilidade. Quem aí tem medo do cancelamento? Você já parou para pensar que seus stories podem estar ofendendo e ferindo alguém? No mundo real ou virtual, não se pode esquecer: o que falamos pode trazer uma série de consequências emocionais, sociais e até jurídicas para nós e para os outros.


Giullia Albertini é estudante de Medicina Veterinária na Unifor e influencer (Foto: Ares Soares)

É por isso que Giullia diz não abrir mão do bom senso em sua carreira de influencer. Nas imagens que faz, observa quem aparece nos seus vídeos para não desrespeitar o direito de imagem de ninguém. Reflete sobre o que não se deve mostrar das aulas, como as peças anatômicas dos animais que estuda, por exemplo. Prefere usar as imagens didáticas de livros e, se vai ter outras pessoas nos seus stories, que haja autorização delas.

E assim ela vai mantendo o bom humor nos vídeos, sem passar a ideia de um conteúdo muito roteirizado e buscando posts que possam engajar com responsabilidade. “Por exemplo, eu faço Veterinária. É legal fazer vídeo dando dicas do que não pode dar de comer pro seu pet”, diz. Segundo Giullia, as pessoas amam curiosidades.

“Se você quer divulgar um trabalho ou fazer seu nome na vida profissional, contar histórias do seu trabalho, o que já viveu, ensinar, curiosidades, tudo isso ajuda bastante seu crescimento”, acredita a estudante, que conta nunca ter tido problemas sérios nas redes sociais, nem fugido de pautas diante da sua responsabilidade com o conteúdo que posta.

+ Profissionais de diferentes áreas investem na rede social do momento

O cancelamento no tempo dos excessos

Mas não faltam exemplos negativos no mundo de excessos em que vivemos. Quem aí lembra do vídeo vazado por uma trabalhadora de saúde, quando o jogador de futebol Neymar deu entrada em um hospital de Fortaleza após sofrer uma lesão na Copa do Mundo de 2014?

Ou de estudantes e profissionais fazendo dancinhas e publicando imagens anatômicas em laboratórios e salas de cirurgia? Ou ainda de especialistas da área de humanas expondo pessoas em situação de vulnerabilidade? Conselhos de várias categorias têm corrido para orientar publicações nas redes sociais e evitar consequências graves, como perda da licença para exercer a profissão.

Há casos mais subjetivos também. Recentemente, três universitárias postaram um vídeo no qual perguntavam, em tom de brincadeira, como “desmatricular” uma colega de sala com cerca de 40 anos. “Era para estar aposentada”, diziam, rindo. O vídeo viralizou rapidamente, e a universidade instaurou um processo interdisciplinar. A repercussão negativa foi tanta que as três acabaram desistindo do curso.

Zaneir Gonçalves Teixeira, professora do curso de Direito da Unifor e doutora em Direito Público, considera que devemos nos preocupar não só com as repercussões jurídicas das postagens nas redes sociais, mas também com a excessiva exposição de nós mesmos e das pessoas próximas, bem como o tempo que é consumido no mundo virtual.


“Seria importante pensar em qual ética orienta nossa relação com o mundo por meio das redes sociais, pois essa relação deve ser pautada também por uma ética das imagens e uma ética do discurso que propagamos ali”Zaneir Teixeira, docente do curso de Direito da Unifor

Segundo ela, a estrutura narcísica da maioria das redes sociais, em que a pessoa busca chamar atenção para si, acaba por apagar a relação com o outro, ou deixá-la em segundo plano. Antes de tudo, é preciso pensarmos se nossa postagem pode atingir alguém, se pode expor uma pessoa vulnerável e se pode trazer alguma espécie de desconforto.

E então o caminho é descartar qualquer conteúdo desse tipo. “‘Lacrar’ em cima da dor ou do problema do outro não pode ser o objetivo do nosso uso das redes, mesmo porque amanhã alguém estará ‘lacrando’ em cima de nós, e não vamos gostar nada disso”, diz Zaneir.

+ O que é a cultura do cancelamento?

Cuidado com as consequências jurídicas

Professor da graduação em Direito da Universidade de Fortaleza, João Araújo Monteiro Neto observa que a lista de crimes cometidos frequentemente na internet pode ser vasta: discriminação em virtude de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e orientação sexual, injúria racial, estelionato afetivo, cyberstalking, fraudes e golpes dos mais diversos possíveis.

“Outro aspecto importante é que algumas práticas, apesar de não serem consideradas criminosas, podem ser consideradas como ilícitos cíveis, obrigando o responsável, depois do necessário processo judicial, a dar indenizações pelos danos materiais e/ou morais que causaram na pessoa ofendida”, alerta.

Diante disso, algumas empresas começam a orientar boas práticas aos clientes e mesmo criar políticas ou regras de uso em redes sociais corporativas. O professor cita uma empresa aérea europeia que orientava os clientes a pedir autorização de imagem a demais passageiros que eventualmente aparecessem em suas imagens dentro da aeronave, ainda que para uso pessoal.

João acredita que esta seria uma boa prática a ser levada para todos os espaços. Um cuidado importante seria usar as ferramentas disponíveis hoje para borrar pessoas de fotografias e vídeos, já que todos temos direito à proteção do direito de imagem do ponto de vista da personalidade e podemos, inclusive, solicitar alguma reparação por algum prejuízo causado a nós em um post.

O fato é que as postagens nas redes sociais também podem ter consequências jurídicas na vida real, cujo grau de gravidade dependerá dos casos concretos, que podem se configurar como crime ou responsabilização civil. É fundamental evitar conteúdos que possam causar danos à imagem de alguém ou à sua atividade profissional, que possam causar algum abalo moral ou psicológico.


“As pessoas têm o direito de se manifestar, mas nem toda manifestação é considerada aceitável. O Direito vem justamente para reprimir estas manifestações que podem violar o direito de outras pessoas ou violar valores fundamentais, como, por exemplo, os discursos de ódio, que são rechaçados pelo nosso cenário jurídico. As pessoas têm liberdade para falar, mas precisam assumir os riscos e as consequências”João Neto, professor do curso de Direito da Unifor

Se a ideia é não avançar os limites legais, a professora Zaneir dá a letra: jamais usar postagens nas redes para atacar pessoas ou grupos. “Lembrar que liberdade de expressão tem limites e não autoriza discurso de ódio, não usar imagens que foram feitas sem autorização das pessoas envolvidas e ter bastante cuidado para não propagar postagens ou mensagens recebidas sem checar a veracidade e a procedência”, sugere.

Discutir limites e olhar sempre para quem pensa diferente

Alessandra Oliveira, docente dos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo da Unifor, lembra que o próprio funcionamento das redes sociais nos impele a produzir conteúdo para falar sobre as nossas vidas, enquanto rolamos o feed e vemos amigos e conhecidos esbanjarem sucesso e positividade em milhares de postagens. “A gente vive em uma sociedade que precisa ser produtiva, que nós precisamos produzir o tempo inteiro”, diz.

Essa produção desenfreada acaba nos deixando sem tempo de parar e refletir no que estamos produzindo e na exposição que estamos criando sobre nossas próprias vidas. “A gente acaba entrando nesse ciclo de gratificação e de necessidade de produção”, explica. E isso vai causar um comportamento compulsivo que retira a separação entre a vida pública e privada.

“Não existe o momento que você não é ninguém, que você é anônimo, que pode usufruir do seu ócio. O tempo inteiro você está produzindo”, aponta. E tanto “triunfo” no mundo virtual nos traz sentimentos de frustração e gera uma sociedade cansada, com comportamentos questionáveis ligados ao uso excessivo das redes.


“Misturamos o público e privado, e isso vai fazer com que acabemos postando sobre a nossa vida particular e sempre estamos acompanhados. Então a gente acha que está postando apenas um procedimento de trabalho, só que outras pessoas estão envolvidas. Tem a imagem de pessoas que podem não querer estar sendo expostas ali”Alessandra Oliveira, docente da Unifor

A professora diz que é preciso ter um cuidado redobrado com a proteção da imagem e de informações, inclusive com a nova Lei Geral de Proteção de Dados, que prevê a configuração de crime com certas exposições. Ela acredita que a sociedade não está tomando o devido cuidado com uso da imagem em nome desta necessidade excessiva de mostrar o que está fazendo.

“Isso precisa ser revisto. A gente precisa ter o direito inclusive ao esquecimento, a não ter as nossas intimidades postadas por ninguém”, declara. Para ela, os grupos sociais, seja na universidade ou no trabalho, precisam discutir a questão e negociar a exposição.

+ Privacidade de dados na internet

Outro ponto importante é se preocupar em ter contato com ideias e conteúdos diferentes das nossas. Isso porque as redes sociais, que antes funcionavam por meio de uma timeline, agora abraçam a lógica dos algoritmos. Tudo que nós vemos é um reforço daquilo que já gostamos, do que as plataformas acham que queremos ver conforme os dados da nossa navegação. Passamos cada vez mais tempo nas redes sociais, acessando um feed infinito sem muitos contrapontos ao que já pensamos.

“Isso vai fazer com que a gente acabe visualizando o mundo a partir do nosso ponto de vista. Olhar para o outro — para o diferente, para o estranho, para quem tem uma opinião que não é a nossa — acaba sendo prejudicado”,  diz Alessandra.

E se temos sempre a nossa opinião reforçada, tendemos a achar que esse é o único ponto de vista correto. “Isso vai gerar uma polarização na sociedade, no mundo inteiro. Você vê o movimento de polarização que não acontece só no Brasil, acontece globalmente”, explica a professora.

A questão é que a dificuldade de lidar com o diferente é terreno fértil para as chuvas de haters que vemos na internet, praticando ciberbullying e extrapolando limites. Tudo contribui para a cultura do cancelamento, para agirmos tentando eliminar o que não concordamos. E gera inúmeras consequências, tanto jurídicas como emocionais e psicológicas, em nome da necessidade de divulgar, minuto a minuto, o que fazemos e pensamos.

+ Cyberbullying: como identificar, impactos e consequências

Mas afinal, de onde vem a necessidade de tanta exposição?

Mas, afinal, de onde vem a ânsia frequente de nos expormos? “Vivemos em um tempo de uma cultura narcísica”, resume a psicoterapeuta e professora do curso de Psicologia da Unifor, Sabrina Matos. Vivemos a superexposição, onde o sujeito precisa mostrar tudo, sinalizar que existe. Estamos o tempo todo postando tudo o que fazemos e precisamos que o outro dê um like, aprove, dê uma nota. Se for alta, tudo bem. Se não for, perdemos relevância. 

Por que o sujeito precisa que o outro confirme que ele existe? Que o outro diga que ele é “bacana”?  Por que precisa ter milhões de seguidores? E se passa a não ter milhões de seguidores, porque ele deprime?

“É porque, no fundo, eu vivencio um desamparo tremendo. No entanto, esse desamparo, essa condição faltosa, é estruturante do nosso psiquismo. Nos estruturamos exatamente a partir dessa falta. E, estudando Freud, sabemos que não há nada nem ninguém que vá tamponar essa falta. É esse buraco que nos move, que nos movimenta e nos impulsiona”, explica Sabrina.

Vivemos o tempo do “eu”, e isso, segundo a psicóloga, demarca uma dificuldade das pessoas considerarem a alteridade, as diferenças. É nisso que surge a cultura do cancelamento e o boom de postagens com o objetivo de eliminar o que não concorda. 

Combinado a tudo isso, estamos também em um momento de excessos, que dão uma intensidade maior ao que publicamos e expomos. Há excessos no trabalho, na comida, na conexão do mundo virtual. “Essa cultura da superexposição, de você publicar tudo da sua vida e do seu trabalho, de considerar que o outro vai ver, traz consequências. As redes sociais abarcam um quantitativo imenso de pessoas que vão ver o que você coloca ali”, considera Sabrina.

Ela lembra do episódio das estudantes que ridicularizaram a colega de 40 anos e, depois, foram canceladas. “De maneira nenhuma estou sustentando o que fizeram, mas o movimento que veio em seguida é terrível, de cancelamento”, afirma.


“Quando pensamos a respeito das consequências psicoemocionais na vida das pessoas que são afetadas por publicações nas redes sociais, dependendo da fragilidade psíquica e emocional daquele sujeito, elas podem ser terríveis”Sabrina Matos, professora do curso de Psicologia da Unifor 

Para agir no mundo virtual com responsabilidade emocional e psicológica

As relações sociais na atualidade são fortemente impactadas pelas tecnologias e meios digitais, atesta também a professora Aline Lira, psicóloga clínica e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Unifor. Para ela, a necessidade de exposição pode levar as pessoas a uma “tirania da visibilidade”, supondo o desinteresse em preservar informações privadas nos contextos digitais.

Além disso, a docente destaca que estudos apontam que o uso excessivo de tecnologias pode levar a diferentes prejuízos psicossociais em todas as fases do desenvolvimento, como perda ou  empobrecimento  das  relações  interpessoais,  mudanças  de  humor,  alteração da percepção do tempo, danos cognitivos, níveis de atenção prejudicada desde a infância até a terceira idade. “Estudos apontam, por exemplo, que o abuso digital pode causar sentimentos depressivos, raiva e hostilidade, consumo excessivo de álcool, ansiedade e até risco de suicídio”, complementa.


Aline Lira é psicóloga clínica e docente da Universidade de Fortaleza (Foto: Arquivo pessoal)

Antes de qualquer estratégia para o uso responsável das redes sociais, Aline diz ser necessário reconhecer que as tecnologias virtuais em si não são fatores de risco ao desenvolvimento. “Não podemos ignorar a potencialidade das tecnologias digitais para transformar nossas práticas sociais, mas é necessária cautela quanto ao seu uso”, ressalta.

Ela elenca uma série de boas práticas para sobrevivermos no universo hostil das redes:

  • É preciso equilibrar a vida online e offline. Ambas são importantes, mas a realidade não substitui a realidade virtual. A presença física, o toque, o estabelecimento de regras sociais, o conhecimento de si e do outro, o investimento emocional nas relações e negociações das diferenças são tarefas indispensáveis para a manutenção dos vínculos, sejam com amigos, família, relacionamentos amorosos e profissionais;
  • É importante delimitar de forma mais nítida o que é “meu” e diz respeito a minha vida e o que é do “outro”, de forma a estabelecer regras mais nítidas de privacidade que permitem não só a proteção do outro, como de si;
  • Existem riscos nas tecnologias digitais que merecem nossa atenção;
  • Não podemos buscar no outro (nas redes sociais) a validação de nossas vidas. É preciso fazer um caminho de autoconhecimento e apropriação de si. 
  • É preciso educar as pessoas para um movimento voltado para o consumo equilibrado, suficiente e consciente do uso das ferramentas tecnológicas. 
  • Às vezes é preciso desconectar para conectar!