seg, 27 fevereiro 2023 11:33
Entrevista Nota 10: Glauber Filho e o humor cearense no mercado cinematográfico nacional
Glauber Filho dirigiu, junto com Halder Gomes, a obra “O Cangaceiro do Futuro”, série brasileira de comédia que ganhou destaque entre as mais assistidas da Netflix em 2022
Conhecido no Brasil como “terra do humor”, o Ceará possui longa história na arte de fazer rir enquanto ri de si mesmo. É daqui que saiu Chico Anysio e Tom Cavalcante, dois grandes comediantes de sucesso que ganharam as telas dos cinemas e das televisões nacionais. Mas também é daqui a eleição de um bode para vereador em Fortaleza; a característica vaia cearense; e a hilária invasão de jumentos no aeroporto da Capital cearense. Todas essas nuances cômicas fazem do cearense um povo único quando o assunto é humor.
Da tradição à modernidade, o humor com sotaque cearense tem ganhado destaque com novos nomes e novas formas de fazer rir ocupando diferentes plataformas. É o que analisa Glauber Filho, diretor dos longas “Bezerra de Menezes: O Diário de Um Espírito”, “As mães de Chico Xavier” e da obra “O Cangaceiro do Futuro”, série brasileira que ganhou destaque entre as mais assistidas da Netflix em 2022. A série conta a história de Virguley, um nordestino que vive passando sufoco em São Paulo, fazendo bicos enquanto sonha em voltar rico para sua terra de origem.
Na Entrevista Nota 10 desta semana, o também professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza, da Fundação Edson Queiroz, faz uma análise sobre a inserção da comédia cearense no mercado cinematográfico nacional e fala sobre as lutas da classe da qual faz parte até chegar na qualidade da mão de obra atual.
Confira a entrevista na íntegra a seguir:
Entrevista Nota 10 — Poderia nos contar brevemente sobre como surgiu seu interesse pela comédia cearense em produções audiovisuais?
Glauber Filho — Meu interesse pela comédia cearense é uma coisa natural. Acredito que todo cearense se interessa por esse humor porque é uma comédia da vida que encontramos em todos os lugares: no centro da cidade, no sertão e na própria família. São várias situações em que essa comicidade se apresenta, mas não sei dizer qual é a razão disso. Existe a hipótese de que é devido à dificuldade de sobrevivência da vida, não só pela relação geográfica de clima, onde o ser humano encontra artimanhas para sobreviver, mas também uma questão cultural que é herdada. Uma cultura mágica de imaginário romançal, que está na literatura de cordel e nos folguedos, que vem muito dessas artimanhas de sobrevivência desses personagens. É o caso do Mateus, do bumba meu boi, que encontra essas artimanhas de sobrevivência no rir de si mesmo, que se vença a tirania com isso, algo muito próprio do Ceará. Acredito que esse interesse pela comédia vem daí.
Já o meu interesse pela comédia no cinema se deu muito forte mais tarde. O cinema me proporcionou várias entradas de produção em diferentes filmes. Iniciei no realismo fantástico, depois fui para o cinema mais espiritualista e, a partir dali, comecei a ensaiar alguma comédia com o filme “Bate Coração”, uma comédia que estava na temática espiritualista. Mas, eu e o Halder (Gomes), temos uma trilha comum, a gente lutou muito pelo desenvolvimento do cinema local, assim pude acompanhar as produções dele, e ele acompanhou as minhas. Muitas vezes compartilhamos essas produções. A primeira vez do longa “Cine Holliúdy”, por exemplo, eu estava ali do lado, cheguei a defender esse projeto em alguns editais, depois ele seguiu seu caminho. Recentemente, chegou o convite de Halder e Edmilson Filho para dividirmos a série “O Cangaceiro do Futuro”, uma experiência sensacional.
Entrevista Nota 10 — Conhecido no Brasil como terra do humor, o Ceará possui uma certa tradição quando o assunto é fazer rir, e alguns nomes se destacam nessa missão: Chico Anysio e Tom Cavalcante, por exemplo. Em 2013, “Cine Holliúdy” se tornou um fenômeno popular, atraindo milhares de pessoas para os cinemas. A obra revelou um tipo único de humor cearense e lançou nacionalmente Edmilson Filho, mostrando que o Ceará continua sendo celeiro para novos humoristas. O que torna a comédia cearense tão especial e diferente do que é feito em outros estados?
Glauber Filho — Essa coisa do “rir de si mesmo”, frase que colocamos como sendo de superação das dificuldades, ao mesmo tempo, vencendo todas as formas de tirania, faz com que o Ceará tenha várias camadas de comédia. Nós temos, por exemplo, o Leonardo Mota com uma comédia muito mais inteligente, sutil, silenciosa, irônica e satírica, herdada pelo Chico Anysio. A gente nota que o Chico não é apenas a questão dos personagens, mas esse humor fino e inteligente que ele tem. Também temos essa comédia de personificações muito presente nas imitações do Tom Cavalcante, algo básico do teatro, o imitar para fazer rir. Temos isso com alguns outros comediantes talentosos que usam o travestismo para fazer rir.
A gente também tem momentos ricos na comédia cearense quando se inicia uma projeção a partir da criação de personagens de palco, nos anos 90. Temos isso com a Valéria Vitoriano fazendo a Rosicleia; a Karla Karenina fazendo a Meirinha; e o Marcondes fazendo seu personagem, o Falcão. Essa ocupação com festivais de comédia cearense em barracas de praia enquanto se servia pizza virou uma programação turística. Além disso, revelou novos comediantes, como Edmilson Filho e Haroldo Guimarães, que estão no “Cine Holliúdy”.
É interessante ver essas camadas da comédia cearense porque é algo natural do povo do Ceará. A gente passa por comédias de absurdo também, ao ponto de termos na nossa própria história a eleição de um bode (Ioiô). E, mais recentemente, vimos uma invasão de jumentos no aeroporto de Fortaleza. Essas coisas estranhas e absurdas, que em outros locais se colocariam como uma estética surrealista, é muito natural e faz surgir a comédia cearense.
Hoje, também fazemos stand up. O Moisés Loureiro, por exemplo, está dominando muito bem esse palco, fazendo comédia inteligente, e o Max Petterson também. É uma comédia muito viva e plural. Maranguape, por exemplo, é um lugar do Chico Anysio de produção humorística, né? Ou seja, onde a gente apontar, vai ver comediante em todo canto. Tem o próprio Halder Gomes com toda a vivência de Senador Pompeu. Essas coisas absurdas do sertão, esse imaginário, esse lugar, ele traz nas suas escritas de roteiro. É muito natural porque, enquanto entra em uma técnica de roteiro e direção, faz parte do dia a dia. É a vida comum. Por exemplo, estar com Halder, sair com ele, Edmilson, Haroldo, Falcão, a gente vivencia toda hora esse lugar de humor. Não é humor de palco, mas é um humor de varanda, humor de casa, humor de quintais, humor de barzinhos. Então, é muito legal ver isso e foi muito gostoso participar dessa série.
Entrevista Nota 10 — Em 2022, mais obras ambientadas no Ceará se destacaram, a exemplo da série “O Cangaceiro do Futuro”, que o sr. dirigiu em parceria com Halder Gomes. A obra chegou a ficar entre as dez séries mais assistidas da Netflix Brasil. Como tem sido essa inserção no mercado nacional de streaming?
Glauber Filho — “O Cangaceiro do Futuro” foi um convite do Halder Gomes e do Edmilson Filho. Para mim foi um presente, uma grande honra fazer esse trabalho com eles. Os dois já tem mais estrada, então, pude aprender com eles e contribuir.
Essa questão dos streamings é algo que ocorre no mercado do cinema, que, na verdade, vai deixar aos poucos a sala de cinema tradicional. Isso não vai fazer desaparecer a sala de cinema, mas também vai ocupar esses espaços. Ver essa obra chegando entre as dez mais assistidas e ficando em segundo lugar no top dez no Brasil, pra mim foi uma surpresa. Mas, ao mesmo tempo, tenho certeza de que aquele gênero, aquela forma de fazer, estava no caminho certo. Esperamos a segunda temporada, quem sabe?
Entrevista Nota 10 — O streaming tem atraído um público maior de audiência em comparação com as salas de cinema. O mercado cinematográfico nacional encontra uma barreira delicada em relação à quantidade de salas de cinema que cada filme fica em cartaz. Exemplo disso é que “Bem-Vindo a Quixeramobim”, mesmo sendo um sucesso de crítica e público, não rodou o Brasil inteiro. O que tem sido feito para pensar alternativas para que essas produções alcancem mais pessoas?
Glauber Filho — A sala de cinema foi muito impactada, não só com a questão da pandemia, mas já vinha um modelo da economia do audiovisual dando sinais de um certo desgaste nesse modelo tradicional das grandes salas. O mercado já vinha sentindo que algo iria acontecer nesse sentido da diminuição. Hoje, até mesmo grandes obras internacionais não conseguem mais atingir níveis tão altos de bilheteria. E é lógico, isso é devido às tecnologias, aos streamings, ao próprio celular, ao modo de vida das pessoas, que não torna fácil voltar aos patamares deste mercado.
Para mim, isso é uma adaptação que resulta em filmes cada vez mais nichados, como o exemplo do Halder com “Bem-vindo a Quixeramobim” e outros. Não se consegue chegar no país inteiro pelo número de salas e pela competição com o cinema internacional, por ser algo que o mercado não consegue tornar tangível de ser avaliado, que é esse interesse do público que flutua entre várias possibilidades de acesso de mídias de exibição. Isso ainda é uma grande interrogação para o mercado.
Entrevista Nota 10 — Como o senhor avaliaria a qualidade da mão de obra do audiovisual no Ceará na última década?
Glauber Filho — O Ceará fez uma política que ocorreu em várias gestões de governos estaduais e locais com a participação efetiva da classe cinematográfica. Eu e Halder, por exemplo, estivemos muito nessa luta de desenvolver, propor e provocar essas políticas para que resultasse nessa qualidade de mão de obra atual. Vemos filmes no Ceará, não somente comédia, conquistando muitos espaços, não só do mercado, mas também de festivais e espaços de janelas de exibição. O curso de Cinema e Audiovisual da Unifor é fruto dessa luta. Podemos construir uma história dessas representações do cinema cearense nessa luta política, assim como os lugares onde essas representações chegaram, muitas vezes assumindo instituições públicas e/ou de proposição de políticas, o que culminou com a chegada dos cursos de graduação na área de cinema.
Entrevista Nota 10 — E qual a importância do curso de Cinema e Audiovisual da Unifor na formação e qualificação desses profissionais?
Glauber Filho — Existiu uma sensibilidade da própria Universidade de Fortaleza em perceber esse mercado e fornecer qualificação, porque não é uma questão local, é uma questão mundial. O cinema é a terceira maior economia global, por isso ter qualificação dentro da Universidade é importante e é de direito. A Unifor, cada vez mais, desenvolve e qualifica novos profissionais e a gente vê o resultado com egressos ganhando prêmios e espaços em janelas de exibição. Tive o prazer imenso, por exemplo, de encontrar no set do “O Cangaceiro do Futuro”, um ex-aluno, que estava ali trabalhando, realizando suas funções com muita competência. Ver isso acontecer é uma felicidade imensa.