Pesquisa Unifor: Estudo revela alta subnotificação de mortes por Chikungunya no Sudeste do Brasil

seg, 4 novembro 2024 17:29

Pesquisa Unifor: Estudo revela alta subnotificação de mortes por Chikungunya no Sudeste do Brasil

O vírus chikungunya foi detectado pela primeira vez no Brasil em 2014 e, desde então, tem causado grandes epidemias


Há uma dificuldade de obter um diagnóstico correto da Chikungunya, dada a falta de vigilância laboratorial e pós-morte (Foto: Getty Images)
Há uma dificuldade de obter um diagnóstico correto da Chikungunya, dada a falta de vigilância laboratorial e pós-morte (Foto: Getty Images)

A Chikungunya é uma doença viral transmitida principalmente pelo mosquito Aedes Aegypti, o mesmo vetor da dengue e da zika. Com o primeiro caso confirmado no Brasil em 2014, a enfermidade traz sintomas como febre alta e intensas dores articulares, muitas vezes debilitantes, que podem persistir por meses e até anos, em alguns casos. Apesar da gravidade, muitas notificações da enfermidade não são precisas, o que acaba dificultando o seu combate.

Nesse contexto, o artigo científico intitulado “Excess Mortality Associated with Chikungunya Epidemic in Southeast Brazil, 2023”, liderado por André Ribas — da Faculdade de Medicina da Escola de São Leopoldo Mandic —, foi elaborado com contribuições significativas dos pesquisadores Antonio Lima Neto, conhecido como Dr. Tanta, e Erneson de Oliveira, ambos da Universidade de Fortaleza, instituição da Fundação Edson Queiroz. 

O estudo tem como objetivo quantificar o excesso de mortalidade durante a epidemia de chikungunya, identificando casos em que a doença é a causa subjacente de mortes não registradas como relacionadas a ela. Assim, a pesquisa busca revelar o impacto real dessa enfermidade.

Atentar para o excesso de mortalidade é essencial, uma vez que o vírus chikungunya ainda é considerado uma virose emergente, ou seja, pode se apresentar na fase aguda, pós-aguda e crônica, chegando a se estender por meses e até anos. Além disso, existe uma dificuldade de se obter um diagnóstico correto, dada a falta de vigilância laboratorial e pós-morte. 

“O estudo é fundamental no contexto da maior epidemia de dengue já registrada no Brasil, em 2024, que alcançou quase sete milhões de casos e mais de seis mil óbitos, concentrando-se em regiões do Centro-Sul, onde o mosquito agora sobrevive mais tempo, impulsionado pelo aquecimento global”, explica Tanta, que é secretário executivo de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa) e professor do curso de Medicina da Unifor.


Enquanto a dengue dominou as atenções, esta pesquisa traz à tona uma epidemia silenciosa de Chikungunya, que afetou gravemente algumas áreas, mostrando alta letalidade principalmente entre idosos e pessoas com comorbidades. Esse estudo ilumina a importância [de monitorar a] Chikungunya, uma doença que pode ser fatal até mesmo em pessoas saudáveis e que precisa ser considerada nas políticas de saúde pública” — Tanta, secretário executivo de Vigilância em Saúde da Sesa e professor do curso de Medicina da Unifor

Além dos pesquisadores mencionados, outros profissionais também participaram dessa colaboração: Rosana Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Escola de São Leopoldo Mandic; José Soares Andrade Júnior, que representa o Programa Cientista Chefe da FUNCAP e o Departamento de Física da Universidade Federal do Ceará (UFC); e Luciano Pamplona Cavalcanti, professor e pesquisador da UFC e superintendente da Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará (ESP/CE)

Métodos 

O estudo foi realizado nas macrorregiões de saúde Norte e Nordeste no estado de Minas Gerais, onde houve alta incidência de Chikungunya durante a epidemia de 2023. Essas regiões, que abrigam aproximadamente 2,5 milhões de habitantes, foram selecionadas devido à semelhança epidemiológica e à sua distribuição demográfica variada entre áreas urbanas e rurais.

Montes Claros, com 413 mil habitantes, é a principal cidade dessas regiões. O clima tropical da área, sem eventos climáticos extremos no período do estudo, garantiu que os dados de mortalidade não fossem influenciados por fatores ambientais, permitindo uma análise precisa do impacto da chikungunya.

Para análise de dados, foram utilizados três sistemas de informação do Ministério da Saúde: o sistema de vigilância laboratorial (GAL), o sistema de notificação de doenças (SINAN) e o sistema de mortalidade (SIM).

A partir do GAL, foram coletados dados de casos confirmados de chikungunya, dengue e Covid-19 por RT-qPCR. Enquanto isso, o SINAN forneceu informações sobre notificações de casos, e o SIM registrou dados de mortalidade por todas as causas, excluindo causas externas, como acidentes e homicídios. A combinação desses dados permitiu uma análise robusta dos padrões de mortalidade.


O estudo foi realizado em Minas Gerais, onde o clima tropical e a ausência de eventos climáticos extremos não influenciaram a população de mosquitos, garantindo maior segurança na análise dos dados (Foto: Getty Images)

Na seleção da amostra, o estudo incluiu todos os casos confirmados de Chikungunya nas duas macrorregiões entre 2017 e 2023, excluindo o período mais crítico da pandemia de Covid-19 (de janeiro de 2020 a julho de 2022) e o pico da epidemia de chikungunya (dezembro de 2022 a maio de 2023) para evitar distorções. Dessa forma, foi possível calibrar o modelo de forma que refletisse com precisão as mortes estimadas e o impacto real da doença.

Para estimar o excesso de mortalidade, foi utilizado um modelo de regressão de Poisson robusto, adequado para modelar dados de contagem, especialmente em estudos epidemiológicos.

Esse modelo incluiu variáveis temporais para ajustar tendências sazonais e de longo prazo, essenciais para doenças infecciosas como a Chikungunya. A previsão de mortalidade foi feita com base no modelo ajustado, e o excesso de mortes foi calculado pela diferença entre as mortes observadas e as esperadas durante o pico da epidemia.

Resultados 

Com o avanço da pesquisa, concluiu-se que houve uma transmissão intensa de Chikungunya nas regiões norte e nordeste de Minas Gerais, resultando em um expressivo excesso de mortalidade.

“Esse fenômeno — já identificado em outros contextos, como na Jamaica, na República Dominicana, em territórios ultramarinos da França no Caribe e em outras áreas do Brasil — revela que as epidemias de Chikungunya frequentemente levam a um número significativo de mortes que passam despercebidas pelos sistemas de vigilância tradicionais”, pontua Antonio Lima Neto.

No caso específico das regiões analisadas em Minas Gerais, o estudo estimou cerca de 900 mortes associadas direta ou indiretamente à Chikungunya durante a epidemia de 2023. Entretanto, apenas 15 dessas mortes foram confirmadas oficialmente, demonstrando que a vigilância identificou apenas uma fração dos casos letais, o que representa uma subnotificação de até 60 vezes.

Esses dados ressaltam a importância de um sistema de vigilância mais rigoroso e de protocolos de manejo clínico cuidadosos para enfrentar a Chikungunya, principalmente entre os idosos, que são a população mais vulnerável.

Causas da subnotificação e recomendações 

A subnotificação de óbitos por Chikungunya ocorre, em grande parte, devido à falta de consenso, mesmo em nível internacional, sobre o potencial letal da doença. Muitos profissionais e sistemas de saúde ainda não reconhecem a Chikungunya como uma infecção capaz de causar mortes diretas.

Esse posicionamento dificulta o desenvolvimento de protocolos específicos para a identificação e registro dos óbitos relacionados ao vírus. Além disso, a falta de exames pós-morte específicos e de uma investigação rigorosa dos óbitos associados à doença são limitações significativas, principalmente em razão da falta de recursos. Outro fator crucial é a ausência de comitês especializados em investigação de óbitos por arboviroses em muitas regiões.

“No Ceará, por exemplo, onde se registrou um número maior de mortes por Chikungunya durante as epidemias de 2016 e 2017, esse avanço foi possível graças à instalação de um comitê de investigação e a protocolos que permitem uma análise minuciosa dos casos. Isso inclui a reconstituição do curso clínico do paciente desde o diagnóstico, que possibilita estabelecer a relação da Chikungunya com a causa do óbito”, enfatiza Tanta.


A Chikungunya é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, causando febre alta e dores intensas nas articulações (Foto: Getty Images)

Com isso em vista, para mitigar tal problemática é necessário considerar pontos importantes, como investir em uma infraestrutura laboratorial robusta e em vigilância epidemiológica abrangente, permitindo que todos os casos suspeitos de arboviroses sejam testados com maior precisão. 

Protocolos para investigação de casos graves e óbitos relacionados à Chikungunya também são fundamentais, pois possibilitam uma análise detalhada do curso clínico e a adoção de estratégias de manejo eficazes para reduzir a letalidade, especialmente entre idosos e pessoas com comorbidades.

Além disso, o controle vetorial é crucial para reduzir a transmissão, visto que o Aedes aegypti pode manter níveis altos de disseminação mesmo com baixa infestação. Programas de eliminação de criadouros e combate ao vetor ajudam a prevenir surtos e diminuem a sobrecarga no sistema de saúde.

O acompanhamento rigoroso de pacientes com Chikungunya também é recomendado, incluindo o monitoramento na fase pós-aguda para identificar complicações e prestar o tratamento adequado, principalmente em casos crônicos. Essa abordagem integrada, desde o diagnóstico até o acompanhamento, melhora o prognóstico dos pacientes e ajuda a controlar o impacto da doença.

Publicação internacional

Com a relevância da pesquisa, o artigo foi publicado na revista internacional Frontiers in Tropical Diseases, dedicada a promover pesquisas de ponta sobre fisiopatologia e controle de doenças que ocorrem única ou predominantemente em regiões tropicais do mundo. 

Adicionalmente, a revista alcançou um CiteScore de 1.6, refletindo sua relevância crescente. Com um fator de impacto relatado de 1.3 para 2023, o periódico também opera em um modelo de acesso aberto, promovendo o acesso global e a disseminação de pesquisas.