Entrevista Nota 10: Eduarda Rabelo e os desafios do autismo durante a adolescência

seg, 1 julho 2024 19:45

Entrevista Nota 10: Eduarda Rabelo e os desafios do autismo durante a adolescência

Psicóloga do Preparando para a Vida pontua como o Transtorno do Espectro Autista se manifesta no cotidiano dos jovens, além de falar sobre o papel do programa na promoção de autonomia e autoconhecimento dos adolescentes atendidos


Especialista em Terapia Cognitiva Comportamental, Eduarda possui formação interdisciplinar em TEA e treinamento em habilidade sociais (Foto: Arquivo pessoal)
Especialista em Terapia Cognitiva Comportamental, Eduarda possui formação interdisciplinar em TEA e treinamento em habilidade sociais (Foto: Arquivo pessoal)

A adolescência costuma ser uma fase turbulenta da vida, onde os jovens precisam lidar com grandes mudanças corporais, sociais e, principalmente, mentais. São cobranças de responsabilidades, vida escolar, decisões de carreira, pressões sociais e adaptação a um novo “eu”, que surge em meio a esse turbilhão de coisas. 

E para os adolescentes que estão no Transtorno do Espectro Autista (TEA), essa realidade se soma às próprias questões que circundam o diagnóstico. Muitas vezes, esses indivíduos necessitam de auxílio para se desprender da identidade infantil em que muitas vezes estão inseridos, podendo assim começar uma nova etapa mais autossuficiente. É esse serviço que o programa Preparando para a Vida oferece.

Promovida pelo Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami) da Universidade de Fortaleza, a iniciativa acolhe jovens autistas de 10 a 16 anos, trabalhando vários aspectos na vida deles, como a expressividade na comunicação, habilidades sociais, autocuidado, criatividade e imaginação, além de apoio à vida diária.

“São vivências práticas, com atividades que colaboram para estimular as habilidades cognitivas, a atenção, a socialização e a criatividade para desenvolver um adulto independente”, explica Eduarda Rabelo Barros, psicóloga do programa. Especialista em Terapia Cognitiva Comportamental e em Transtornos Alimentares e Obesidade, ela possui formação interdisciplinar em TEA, curso em Avaliação de Risco e TEA e treinamento em Habilidades Sociais.

Na Entrevista Nota 10 desta semana, a profissional pontua como o Transtorno do Espectro Autista se manifesta no cotidiano dos jovens, além de falar sobre o papel do programa na promoção de autonomia e autoconhecimento dos adolescentes atendidos.

Confira na íntegra a seguir.

Entrevista Nota 10 — A adolescência é um período que costuma trazer diversos desafios para os jovens, desde questões com o próprio corpo até mudanças nas interações sociais. Como o autismo se apresenta nessa fase? Que desafios existem ou são potencializados para adolescentes que estão no espectro? 

Eduarda Rabelo — Antes de olharmos para o diagnóstico, precisamos entender os desafios da fase da adolescência, que é complexo para todos os jovens. Mas a forma como o autismo será apresentado na adolescência pode variar de acordo com a subjetividade de cada adolescente e pelo nível de funcionalidade dele.

Alguns adolescentes podem enfrentar desafios como, por exemplo, a comunicação nos ambientes sociais, a compreensão e usar a linguagem socialmente apropriada é cobrado, assim como na socialização perceber as emoções e intenções do outro, em grupos sociais, na escola, no ambiente familiar e no trabalho. Também há a hipersensibilidade sensorial, alguns ambientes muito barulhentos ou superlotados podem ser estressantes, as grandes mudanças de rotina. A transição da escola para a universidade, escolhas de carreiras e os desafios da autonomia que a adolescência exige diariamente na tomada de decisões independentes.

Entrevista Nota 10 — Além das questões sobre socialização e estímulos sensoriais, a seletividade alimentar também costuma ser um desafio para pessoas que apresentam TEA. De que forma esse tópico se demonstra na adolescência? Isso chega a ser um problema para além da nutrição em adolescentes autistas? 

Eduarda Rabelo — Sim. Na adolescência, podem acontecer mudanças de preferências alimentares, assim como a pressão social relacionada à alimentação e a autonomia do próprio adolescente também na escolha desses alimentos.

A seletividade alimentar pode gerar sofrimento para além da nutrição, pois quando se apresenta numa dieta limitada e desequilibrada, pode gerar deficiência nutricional, afetando a saúde do adolescente em um todo, tanto física quanto mental. Também pode impactar na socialização do adolescente em refeições em família e eventos sociais, afetando suas interações sociais e o bem-estar emocional.

É necessário abordar a seletividade alimentar com profissionais de saúde especializados e competentes em equipe para desenvolver as melhores estratégias para o adolescente, de forma gradual e acolhedora.

Entrevista Nota 10 — O acompanhamento profissional é essencial para o tratamento do TEA. No entanto, é importante que os pais e/ou responsáveis por adolescentes autistas também recebam alguma atenção especial? Como o suporte a essa rede de apoio promove o bem-estar desse jovem?

Eduarda Rabelo — Os pais e cuidadores são essenciais para os cuidados e desenvolvimento dos jovens no espectro. Se os pais também não estiverem bem ou não conseguirem acolher esse jovem, como vamos gerar um ambiente saudável para o adolescente?

Os pais e os cuidadores podem se beneficiar de palestras e cursos sobre o autismo, para compreender melhor os desafios que o adolescente enfrenta. [Também podem buscar] a psicoterapia individual para trabalhar suas próprias questões individuais e emocionais, cuidado pessoal, e ainda sua função de cuidador, mãe/pai.

[É importante] ter um bom diálogo com as terapeutas do adolescente, o que propicia um processo de psicoeducação. Se conectar com outras famílias também pode proporcionar o compartilhamento de recursos, estratégias e vivências, obtendo assim suporte mútuo. A rede de apoio para o adolescente é fundamental para o bem-estar emocional e qualidade de vida não só para o adolescente, mas para todo o ambiente familiar.

Entrevista Nota 10 — Desde 2023, a Universidade de Fortaleza disponibiliza o programa Preparando para a Vida, que acolhe jovens de 10 a 16 anos com TEA. Como essa rede multidisciplinar – que conta com profissionais de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional – atua para promover mais autonomia e uma melhor adaptação a essa nova fase de vida? 

Eduarda Rabelo — O programa Preparando para a Vida atua de forma acolhedora para cada adolescente. Para desenvolver melhor as habilidades sociais, autonomia, independência e comunicação, o adolescente têm intervenções em formato de grupo e individual, no qual o jovem consegue se sentir mais fortalecido e não mais de forma isolada precisa desenvolver suas habilidades individuais.

São vivências práticas, com atividades que colaboram para estimular as habilidades cognitivas, a atenção, a socialização e a criatividade para desenvolver um adulto independente. Realizamos atividades que propiciam [os jovens a] prepararem seu alimento, terem autoconhecimento, independência nas escolhas (comprar seu próprio alimento numa lanchonete, simulação de comprar seu ingresso para ir ao cinema), descobertas de novas habilidades (tocar um novo instrumento), novas amizades e identificação de interesses .

O programa Preparando Para a Vida proporciona vivências em grupo com a intervenção de três profissionais de forma interdisciplinar, o que é melhor para o desenvolver o adolescente.

Entrevista Nota 10 — Mesmo com apenas um ano de funcionamento, o Preparando para a Vida já atendeu muitos jovens? Como tem sido o feedback dos pacientes e seus familiares sobre o serviço do programa ao longo desse período?

Eduarda Rabelo — São feedbacks positivos sobre a atuação, sobre perceber como o adolescente apresenta e se comunica de forma assertiva no ambiente social em que ele está. O jovem se percebe com mais autoestima e autonomia para realizar suas atividades pessoais.

Cada sorriso e conquista são essenciais para nós. Já ouvimos como fazer sua própria comida, sair com amigos para ir ao cinema e perguntar como outro amigo está são retornos que compreendemos que estamos no caminho certo. Além da  permanência dos adolescentes em grupo.

Entrevista Nota 10 — Hoje vivemos um conflito entre operadoras de saúde e famílias de pacientes autistas, tendo essas empresas cancelado unilateralmente contratos ou dado negativas de cobertura para o tratamento de TEA. Que impacto isso gera na vida dessas pessoas? E, nesse contexto, qual a importância de iniciativas como o Preparando para a Vida na acessibilidade ao bem-estar de jovens autistas?

Eduarda Rabelo — Isso pode gerar sofrimento e menos acessibilidade para terapias tão necessárias para o bem-estar do adolescente. O Preparando para a Vida fornece esse espaço acolhedor para a fase da adolescência no formato particular e acessível, pois são três profissionais que planejam e estão intervindo de forma conjunta nos objetivos para desenvolver o adolescente. Além disso, todo o campus da Universidade de Fortaleza é disponibilizado para eles vivenciarem as atividades planejadas. O adolescente virá uma ou duas vezes na semana para as terapias de forma grupal, durante uma hora e meia, além de haver suporte psiquiátrico que o programa irá fornecer também.